crônica do dia

 

Deixa as águas rolarem

01/08/2001

 

Como de hábito, ela estava com um cigarro na mão. A blusa de lã vermelha, fofa, deixava colo e ombros expostos. A pele parecia mais marcada, com mais imperfeições, se se pode dizer. Talvez os primeiros vestígios do passar dos anos, talvez cicatrizes de sabe-se lá de que atribulações. Mas era outra a mudança visual mais evidente: estava mais gorda. Meu deus, que crueldade dissecar desse modo um ser humano, em poucos segundos, a um primeiro olhar! No entanto, essa é a marca específica da espécie, do bicho essencialmente visual.

Não havia nenhum cheiro marcante. Um perfume duraria até a hora do almoço. Qualquer outro cheiro, mesmo do corpo se notaria, à distância de uma conversa. Não somos como os cachorros, nosso universo de odores é muito limitado. Os cheiros nos contam poucas histórias.

imagem construída em um 286, 16Mhz, com IBM StoryBoard, sem mouse.

Apesar das mudanças no aspecto, apesar de rechonchuda, apesar das marcas dos anos, ela continuava mulher. Essa afirmação talvez machista, é super feminina também. Um elogio à essência do feminino. Algumas mulheres têm essa exuberância de fêmea. Exalam uma síntese inexplicável do ser mulher. Têm uma opulência de atrativos - quase todos indefiníveis, inexplicáveis - para o sexo oposto que, se isso não for o feminino em si, o que o será?

Há algo além das aparências. Do aspecto. Das mensagens enigmáticas captadas pelo olhar. Da forma. Do jeito de mexer o corpo, o rosto, do sutil sorrir com olhos, de como mover os lábios, a língua, os dentes... ah! Não haveria espaço aqui para enumerar todos os imperceptíveis sinais que compõem esse rito milenar, adormecido em nossos cerebelos, suponho, pois independem de qualquer comando consciente, de qualquer decisão, de qualquer vontade explícita - é só deixar as águas rolarem...

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