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Dueto02/10/06Faltavam dez minutos, ou mais, para o sol nascer - sairia acima do horizonte, mas não se mostraria, logo, a quem se perde neste fim de mundo. Um avião cruzou muito longe ou, mais provavelmente, muito alto. Seu som era apenas um murmúrio ao fundo, trovoada distante quase inaudível a ecoar e se repetir. Em primeiro plano, um sabiá enche o universo com um canto maravilhoso, forte, límpido, entoadíssimo. Depois, calava. Em segundo plano, bem mais longe, outro sabiá respondia com a mesma cantoria. O dueto prosseguiu assim por algum tempo. Depois, sem qualquer sinal de que já nascera o sol, o dia seguiu feio, cheio de nuvens pesadas, escuro como se fosse anoitecer. As aves calaram. Só um galo, de tempos em tempos, cocoricava. Como cantam os sabiás! Mas entoam sempre a mesma melodia. Que condão do acaso ou evolução tocou o ser humano? Com que varinha mágica lhe tangeram o cérebro? Quando chamou o quê, pela primeira vez, de Deus? Que equilíbrio surpreendente lhe permite desequilibrar a natureza e, quiçá, o mecanismo universal?
O galo canta pela segunda vez. Insiste. Parece que decidiu ser tempo de todos acordarem. Continua, como som solitário. Chove. Pingos distantes e raros. O dia fica mais e mais escuro, todavia acreditamos que o sol sobe no firmamento azul, além das nuvens. Mais que em seus olhos, o Homem acredita em seu cérebro, sua mente lhe traça o mundo que crê existir. Ela cria a ciência, a chama de exata e lhe faz um monumental pedestal epistemológico para ter a ilusão de pisar em terra firme. As pitangas estão cor de laranja claro ou amarelo escuro. A maioria será colhida por pássaros antes que atinjam o vermelho rubi, textura macia e sabor menos ácido que mais nos agradam. Pingos pingam. O galo cantou. |
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