trecho avulso
As pessoas não saíram de suas casas como na passagem do deus assassino de primogênitos, mas não pintaram, tampouco, seus umbrais com o sangue de ovelhas imoladas: era Natal. Feliz Natal na cidade morta. Nas ruas vazias nem se viam crianças, sequer um cachorro perdido. Feliz Natal na cidade morta, sem bares abertos, nem banca de jornal, nem padaria nem nada. Feliz Natal na cidade vazia: nem aviões nem pássaros nos céus, nem mesmo nuvens. Até o sol tinha seu minuto de silêncio. Tudo quieto com a gravidade plácida da compreensão.
Enquanto os cigarros duraram, fiquei em casa enchendo de palavras papel. Escrevi uma carta para Nova York. Quando chegasse lá o mundo já seria outro, eu já seria outro e a carta já encontraria outro, lá tão longe. A resposta só ia me encontrar tanto tempo depois, esquecido das bobagens que escrevi. E vão sobrando essas anotações à margem da vida como as imagens congeladas de uma fotografia - mentira de um instante retido que jamais se vai repetir. Mentiras eternizáveis como verdades fatais.
Fui enchendo papel. Era fácil: a emoção
transbordava transparente e abundante como o mijo de quem bebeu
demais. Relia. Achava uma merda. Rasgava, jogava fora. Acabou
saindo um poema que chamei "Águas Paradas". E
me sentia assim:
É um momento de vácuo.
Destilada por Deus ou o Diabo
No caldeirão do corpo ou da alma,
Alguma droga ou poção
Acabou por me anestesiar.
Perplexo, me percebo distante das paixões:
Sonâmbulo, vivendo num mundo de sonhos,
Só que não há, aí, sonho algum.
Apenas o vácuo,
Vazio de riso ou de lágrima:
O risco seco na boca,
O olhar parado dos loucos
E a inércia macunaímica.
No entanto, há um sentimento
Mais brando e distante de amor.
Vácuo silencioso e azul.
Por que azul? Não sei, mas azul.
Tudo muito distante
E energia alguma
Em busca de nada ou lugar.
Tédio? Talvez...
E sonos vazios e noites insones.
Até os sonhos me abandonaram!
E faz frio e é verão.
Nem o sol, nem o céu, nem a lembrança do mar
Ou a surpresa de mulheres belas
Ou a carne das mulheres jovens
Ou sorriso de mulheres puras
Ou desejo em olhares lânguidos
Ou o brilho das mulheres sábias
O sabor, o perfume, o contato -
Nada! Nada mais me dá tesão.
Prostração? Hibernação?
Lutar contra a tempestade?
Riscos de luz ligam nuvens tenebrosas.
Os ventos são frios e quentes
E sopram sem direção,
Assombrando fantasmas perdidos,
Pensamentos petulantes de um sonho ancestral
E o vazio de um momento tende para o infinito
Na eternidade do nada.
Nenhum ódio. Nenhuma mágoa. Nenhum rancor.
Constato impotente a morte prematura
De toda emoção por nascer.
A pele sente
O sopro morno de areias quentes
Impregnado de velhas maresias.
Consciência intuída e não sabida
De algo apenas pressentido,
Que jamais se vai desvendar...
O olhar inerte vê o anjo inclemente
Com a espada certeira sobre Laodicéia:
Vômito repugnante da virtude mediana,
Da justiça insípida de partes iguais.
O quadro torto na parede
É justo para os olhos que o olham
De esguelha, tortos também.
Repúdio irracional à elegia
Do que não fode nem sai de cima.
É um momento de vácuo,
A estagnação das águas
No fundo do vale, afinal.
Lagoa límpida por um instante.
Mas o lodo decantado esconde o germe da putrefação.
Nuvens rápidas mudam a face das águas
E prometem e desmentem novos temporais.
Silêncio.
Parênteses vazio
Para explicar o texto inútil
Que já terminou.
Fiquei lá até os cigarros acabarem,
espiando pelas janelas da cabeça e pela janela debruçada
sobre a cidade vazia que me parecia estrangeira e absurda, como
tudo e me repetia, com medo de não acreditar, que no meio
da blindagem de concreto e vidro, em algum lugar, se escondia
você. E firmava os olhos míopes nas casinhas lá
embaixo para enxergar mais nítidas as sombras e luzes,
pintadas pelo pôr-do-sol nas dunas de um deserto percorrido
em sonhos, em cima desse bicho esquisito demais, altivo e esnobe,
com duas corcundas absurdas como todo o resto. Foge, cara. Foge
que o tempo é pouco e o mar está muito longe, na
distância do horizonte. O longe sagrado para a vista se
perder. Aqui, tudo se perde por estar perto demais. Tem o supermercado
de sonhos alheios do outro lado da rua e na esquina, condução
demais para lugar nenhum. Foge! Foge dos signos de possibilidades
de tudo quanto é impossível. Restam as exúvias
quando as cigarras cessam de cantar. Brinca com elas, pois já
mataram o pé de carambola e o jambeiro gigante não
existe mais, nem seu tapete magenta para viajar. Cuidado! Os doutos
escondem no armário um paletó verde cheio de rendas
e babados nas golas e punhos, mas não há confete
nem serpentinas. Só a serpente enroscada e a língua
ferina que lança perfume, veneno e prazer. E eles repetem
que habitam o templo do saber! Foge! Eles são loucos. Foge!
O louco é você.