A névoa desce e apaga o mundo antes da próxima curva na estrada. O vulto das árvores se dilue até se confundir à substância da bruma. A garoa, finíssima, mal se distingue do ruço, mas encharca tudo pela persistência. (Na minha infância toda neblina era ruço.) Talvez estejamos dentro de uma nuvem, numa daquelas que vemos agarradas aos picos, das que agasalham beiradas de montanhas.
A temperatura atual é tida como ideal: vinte centígrados. (Os idealistas devem vir, todos, dos gelos do norte, das terras do frio.) No caixa do supermercado a moça me pergunta se estou com frio e antes que responda me mostra seu tremor, aparentemente impossível de controlar, a bater dentes sem fingimento. Disse-lhe: precisa se agasalhar e ela, com um gesto, mostrou seu agasalho por baixo do uniforme profissional.
No rádio, a moça explica haver um vento sul a trazer muita umidade e conclui: "o que faz baixar ainda mais a sensação térmica" e eu, no inevitável diálogo mudo de todo ouvinte, me perguntava se ela saberia explicar como a umidade nos faz sentir mais frio... Lembrava-me das lições de física e da energia implicada na mudança de estado... O timbre daquela voz, no entanto, desviou minha atenção.
As rádios foram invadidas pelo sexo outrora frágil, malgrado a evolução tenha privilegiado a aparelho vocal masculino. (Alguns machos dos grandes primatas se impõem, literalmente, na base do grito.) Há belas vozes femininas, mas são raríssimas e as emissoras estão repletas de timbres esganiçados e arfantes. (Observe como respirar e falar ao mesmo tempo parece mais difícil à mulher.) O locutor perdeu prestígio num meio de comunicação dirigido apenas à audição.
Praias e mangues continuam aí, lambidos por oceanos e mares num estreito encontro. (São sementeira de vida.) A água sobe e desce em seu ciclo milenar.
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