(de esporadicidade imprevisível)

Estações da vida

11/07/18

Neva em Santa Catarina. Aqui, Copacabana, o ar se liquefaz próximo ao ponto de orvalho. Na dileta São Paulo o frio obriga malhas, cachecóis, agasalhos, fondues e vinhos para os ricos. Os desabrigados penam ante a inclemência da estação neste vigésimo dia do inverno. Resta um longo caminho pela órbita até o equinócio e é justamente o trecho percorrido em menor velocidade. Estica-se o verão ao norte do equador e o inverno aqui.

Apesar da abominável condição climática, era imperativo ir até um supermercado por imposição ditatorial de uma geladeira vazia. Quando desci para enfrentar a materialização do excesso de umidade no ar, em forma de uma garoa fina e ininterrupta, desde o início do dia, entrava no prédio uma senhora idosa, com uma saia até os calcanhares, munida da indefectível bolsa e de uma sacola de papel com uma marca comercial.

Quando a avistei, o porteiro segurava a porta para ela entrar com seu passo miúdo e, em seguida, ele se ofereceu para levar sua sacola, que não aparentava estar pesada. Nisso eu chegara aos seis degraus entre a portaria e o corredor dos elevadores e ali parara a contemplar a cena. Recuei para abrir caminho à dama e meu gesto a levou a se explicar, anunciando como justificativa a sua idade: "eu, nos meus noventa anos" começou a dizer. Já vencera os degraus e estava a meu lado.

"Noventa!" - exclamei interrompendo-a com espanto e incredulidade e concluí - "e eu aqui me achando velho...". Ela parou, mediu-me e perguntou quantos anos eu tinha. "Setenta e quatro", lhe respondi. Ela abriu um sorriso e retrucou: "uma criança! Ainda está usando fraldas?" e riu com gosto de si mesma, antes de retomar o caminho para os elevadores, na companhia de seu fiel escudeiro, Leonardo, o porteiro do dia.

Saí. A garoa era tão fina que não chegava a molhar, mas o vento soprado do mar era frio.

Nota: Dias depois, perguntei ao Leonardo o nome da nonagenária: Hilda.

Wed, 11 Jul 2018 10:31:22 -0300

Adorei, Clôde.

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Que bom! Adoro quando você gosta.


Wed, 11 Jul 2018 10:51:39 -0300

Sou exatamente 10 anos mais "jovem" que vc kkkk

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Não adianta, não perguntarei se você ainda usa fraldas...


Wed, 11 Jul 2018 10:52:41 -0300

Oi, Clôde

Delícia!

Não sei se já contei (se contei, sorry. Será que crianças de 73 anos têm direito a esquecer?)

Tenho duas tias centenárias aí no Rio (irmãs do meu pai). Tia do Carmo fez 100 anos há pouco tempo
(idade que minha mãe faria este ano); e tia Zezé tem 105. Um dia destes ela ligou pra nossa prima Tereza pra se
queixar de que o médico tinha dito que ela está com problemas de tireóide e terá que tomar remédio.
Tereza tentou tranquilizá-la: Não é problema, tia! Eu e Mozart (marido dela) também temos esse problemas e tomamos
remédio. Resposta de tia Zezé: Mas, Tereza, eu vou ter que tomar o resto da vida!?!

Bjs
Ana

Oi, Ana.

Obrigado. Se contou, não lembrava mais.
De todo modo a história é ótima. Afinal, o "resto de nossas vidas" é uma incógnita por mais que o possamos estimar exíguo. Quantas vezes o jovem morre antes dos velhos!


Wed, 11 Jul 2018 10:16:42 -0700 (PDT)

que lindo: uma crianca
a d o r e i
de agora em diante, cada vez q vc se disser velho, direi-lhe, sem espanto nem surpresa, garoto

na verdade isso me lembra o velorio do tio Antonio, q acho eu tinha entre 75-78 qdo morreu
D Zulmira entrou no velorio dizendo, 'ele era um menino', do alto dos seus 90 e muitos, quase cem anos

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Merci, garota.

Você tinha "entre 75-78" - não entendi.
Quem era mesmo dona Zulmira? O nome me é familiar, a pessoa, não.


Wed, 18 Jul 2018 16:38:32 -0300

ela poderia ter dito:
- uma criança, nem retornara as fraldas.

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Poderia, mas nossa diferença de idade é de "apenas" 16 anos, mais ou menos.

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