Chegou manso e trazia a sombra de um sorriso na ironia do olhar. Cumprimentou com um gesto mudo, entrou como se dono da casa fosse e conferiu o aposento antes de se deixar cair pesadamente numa poltrona e, finalmente, falar:
Primo... Alto! Os leitores recém chegados ainda não foram apresentados. A leitora singular, há muito percebeu tratar-se do primo Nicolau, mesmo sem o aroma inconfundível do charuto. Às outras, este é Nicolau, a negra e inevitável ovelha que toda família tem... por razões óbvias, prefiro não nomear as doces criaturas que me visitam aqui, uma por uma.
Primo - insistiu o primo - é duro ser ovelha negra, bode expiatório, carregar a fama... Sabe como é: cria fama e deita-te na cama, dizia a vovó.
Tudo era surpreendente. Não parecia Nicolau. Perguntei se queria tomar alguma coisa, mencionei, de propósito, certa amarelinha de um alambique dessas fazendas centenárias. O primo não quis, mas aproveitou o pretexto e emendou:
Viu só? É exatamente disso que falava. Nós não somo apenas aquilo que somos, ou melhor: é muito difícil ser-se apenas o que se é, no presente, num determinado estado, em um momento particular. Fora o passado que insiste em sobreviver em nós, há o nosso passado dentro dos outros. Esse passado, continua a pintar uma imagem fixa de nós. Entende? Por isso é difícil. Posso ter mudado, virar outra pessoa, sofrer amnésia ou uma lesão cerebral. Posso me transformar no filho pródigo, no bom ladrão, na messalina arrependida, Madalena, o diabo!
Os software de nosso cérebro são impiedosos! A simples visão de um rosto conhecido recobra nos arquivos da memória, não só o nome, mas a ficha completa da pessoa, como uma se fosse ficha policial - só faltam as malditas impressões digitais!
Propus um café. Passamos à cozinha, laboratório de alquimias materiais e espirituais de toda casa. Estava perplexo com a verdade do que Nicolau expunha, diante da dupla verdade: a do conceito, e a que testemunhava ao vivo, no novo Nicolau. Mais manso, ele continuou:
Ora, primo, não falo de você, não vim para acusar. O que me assusta, é perceber que eu mesmo funciono dessa forma. Olho para você e, além de reconhecer o primo e lembrar seu nome, sou assaltado por uma infinidade de idéias que acumulei, sobre você , ao longo da vida. Elas não se impõe como prioridade ou urgência, mas ficam lá, de prontidão, como vizinhas no portão. Se fico atento - e aí está a grande dificuldade! - percebo que, assim que surge uma brecha, começam a matraquear.
Do café, talvez fosse mais importante o perfume que o paladar. Era outro Nicolau diante de mim. Pensava nos cordéis da imagem dele que viviam em mim, e no quanto ainda poderiam atá-lo. Depois do café esperei, e o primo não sacou o charuto. Acendi um cigarro e lhe ofereci outro. Ele disse que não fumava mais. E disse mais:
Primo, são as pequenas coisa, pequenas atitudes, que podem operar grandes mudanças. A revolução não é privativa de nenhum líder político, religioso. Não vem dos sociólogos, psicólogos, economistas ou qualquer outro tipo de embusteiro. A revolução só pode ser feita assim, por cada um, com aquilo que está ao seu alcance e que só dele depende - o seu ser. Sua mente, seu corpo, suas emoções, sua integridade como célula do organismo maior que quer mudar, a sociedade.
Tomamos mais um gole da bebida que, ela também, se tornara um vício, como esse de rotular as pessoas. Tentava ver o primo sem qualquer preconceito, sem deixar interferir tudo que já "sabia". Era difícil. Ele me surpreendeu mais uma vez:
Shakespeare não tinha a opção que nós, desta língua quase morta, temos. Disse "ser ou não ser" e para dizer "estar ou não estar" teria de usar as mesmas palavras. Sim, são palavras, meras palavras mas, as coisas poderiam ser bem diferentes se pudéssemos olhar alguém e dizer que está assim ou assado, em vez de dizer que é de um jeito ou de outro.
Publicada em 23 de março de 1999
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