Saudade da estrela

26/09/97


Sim, os dias são mais longos - vê-se, e as árvores enchem-se de folhas novas e claras, como se tivessem sua própria luz. O capim cresce rápido e as flores, pelo menos aqui, pelo menos neste trópico da cabra, sempre as há. Afora isso, a primavera é como se inverno fosse: úmida e fria.

Neste ano, as plantas se adiantaram todas em suas florações e frutificações. Flores e frutos que anunciam a primavera vieram antes, em pleno inverno que, apesar de frio, como cabe a um inverno ser, foi seco e, portando de céus azuis e sóis oblíquos. Vieram jabuticabas precoces e a explosão amarela do Ipê, em pleno julho.

Hoje, o céu branco caminha para o cinzento e o dia prossegue como se estivesse a acabar. Está frio e venta pouco, mas é como se fosse muito, tão úmido o vento está. Mesmo os pios estão mais raros. E você, leitor hipotético e eventual, que pode estar, em outras coordenadas, talvez, até mesmo reclamando de um ar muito seco e tanto sol, estaria também perguntando, a si ou aos metafóricos botões, porque falo dessas coisas ou, talvez, se há um toque de melancolia nisso que falo, sem nada dizer.

Eis o que quero falar: por que dependemos tanto, para nosso humor, da luz e do calor que emanam, de nossa estrela, nosso Sol? Por que dependemos tanto, para sentirmos uma espécie de aconchego da natureza, desse tom de azul que nos invade a alma, sem ser preciso nem mesmo perceber que invade e inunda nosso campo visual? Por que essa melancolia quando e se a luz do dia começa a declinar?

Dirão os marqueteiros e profissionais da indústria do entretenimento que estou louco - talvez esteja, talvez sempre o tenha sido - dirão que jamais sentiram algo parecido ou que basta se distrair com este ou aquele entretenimento (de preferência ligados às suas multinacionais) para que, não só os dias, como toda a existência seja luminosa e bela. Algum, mais espirituoso, poderá até observar: - já notou que no mundo dos entretenimento as histórias de amor acabam sempre com um sonoro viveram felizes para sempre? E que, com as outras, que não são de amor explícito - porque, no fundo, sempre o serão - há cuidados especiais, um zelo proverbial, com o tal de happy end?

E eu responderia aos marqueteiros do entretenimento: dizem isso porque só viram os bichos em seriados de televisão. Sim, hipotético amigo, se olhamos os animais - o seu cão, os pássaros, as vespas, as borboletas - todos! Todos reagem ao dia cinzento, de nuvens pesadas que desce nas escalas de cinzas como uma escala musical... Aqui abro um parêntese. Essa imagem lembrou-me imediatamente uma música, Peço licença para pôr o disco antes de continuar. Pronto É a Patética, de Tschaikowsky (copiei do disco, mas se o nome é russo, escrito em outro alfabeto, porque não grafar apenas sua pronúncia, com nossas letras?) Não sei se você (estou convencido de só ter um leitor) se você, leitor ímpar, se lembra da sinfonia número 6, com um imenso primeiro movimento e, depois mais três, longos também, mas nem tanto. É uma obra marcada pelo destino. Foi apresentada ao público em agosto de 1893 (pouco mais de um século!) com a regência do autor. O público não se entusiasmou. Três semanas depois, o mesmo público implacável como toda multidão anônima, a consagrava e aplaudia freneticamente. Era o triunfo da Patética! Só que dessa vez, era outro o regente. No intervalo entre as duas apresentações, Tschaikowsky morrera. (e eu pergunto: o público reagia à interpretação de outro maestro ou à morte, esse enigma que sempre transfigura a imagem daquele que morreu?). Mas queria dizer que em todos os quatro movimentos, o final é marcado por uma singela, decidida e fatal escala descendente. Como a sinfonia é em si menor, sei lá como essa escala poderia ser - tenho diploma e peagadê de nulidade absoluta em música - mas se fosse o popular dó maior, seria apenas: dó, si; lá, sol; fá; mi; ré dó. E isso se repete e se repete e volta a se repetir, sempre igual, sempre assim, como quem desce dois degraus, pára um pouquinho, desce mais, dois, pára de novo, depois mais dois e a escada infinita é de uma infinita melancolia. Como um dia que amanhece e depois começa a escurecer... Se você olhar os bichos que estão fora da tela da tevê, verá que eles também ficam acabrunhados com essa descida cromática na luminosidade de um dia.

Sim, dependemos dessa estrela, apenas uma, como bilhões de outras espalhadas por esses mundos cada vez mais difíceis de vislumbrar, nas noites cheias de eletricidade, cada vez mais esquecidas pelas gentes distraídas com as novidades de marqeteiros e industriais do entretenimento.

Dependemos de você, minha estrela, meu Sol, não só para a própria Vida, dependemos de você para a alma também.



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