Eu não disse?

3/12/97


Meu cunhado é tecelão. Diante dessa afirmação algumas pessoas vestem uma máscara difícil de decifrar. Tecelão, em nosso tempo, não é um rótulo com os certificados e autenticações que a sociedade gosta de ver. Como nas páginas e programas da Internet, enchemos as pessoas de rótulos e estes, de carimbos, selos, estampilhas, assinaturas e impressões digitais... Busca-se a segurança, o que se quer é confiança, mas a vida segue seu curso alheia a nossa rotulações e cada esquina é uma interrogação. Confiança não se pode comprar... Disse que meu cunhado é tecelão, e é, porque a imagem do tecelão me encanta e suas tarefas encerram imagens capazes de muito evocar. Mas poderíamos deixar os parentes com seus afazeres e cuidados e tomar para nossos devaneios as rendeiras ou redeiras do nordeste brasileiro, por exemplo, tanto faz. São todos artesãos que conseguem manipular fios sem perder-se na trama - ou seja, o oposto e o inverso deste clode.kubrusly@gmail.com. Quem já parou e olhou mãos que tecem, seja lá como for, não pode ter deixado de se maravilhar com o engenho e a arte imprescindíveis para domar tantos fios e deles tirar o pano ou a rede ou a renda ou, ainda, um alvíssimo sapatinho de bebê. Tampouco pode ter esquecido a comparação tão batida dessas tramas e urdiduras com os fios imaginários de nossas vidas a se entrelaçarem e esticarem num suposto e virtual tear do destino.

Fosse eu um caricaturista e, em vez de uma crônica banal, estaria a fazer, agora, um desenho de mim enroscado no emaranhado de mil fios e com um milhão de outros perdidos, que procuro alcançar e não posso, por estar paralisado pelo nó que fiz de mim... Mas não sei fazer caricaturas e finjo, então, "cronicar". O correio eletrônico, fácil e prático, trouxe para perto, pelo menos pela palavra escrita, pessoas que estavam distantes ou esquecidas, por certo devido aos inconvenientes e misérias inerentes ao transporte da matéria, seja a de uma árvore refeita em papel ou a nossa própria, mutante e efêmera... Não vieram algumas que supus ou desejei, mas tive a surpresa de outras que jamais poderia sonhar. E essas cartas virtuais que, em alguns momentos são meras fileiras de sinais binários - zero ou um, sim ou não - tecem uma gigantesca teia da parte mais abstrata daqueles corpos (alguns tão desejáveis!) complicadíssimos de transportar... (Li, um dia desses, que são trocadas mais de 200 milhões de mensagens eletrônicas por dia!)

O que queria dizer é que sou o pior tecelão, de todos, do que existe de humano, demasiado humano - ah, Nietzsche, se se resume tanto num título, por que não usá-lo e repetir? - do que existe de humano, demasiado humano nesses bilhetes, recados e cartinhas virtuais, ainda que morra de vontade de mexer nesse fios... Circula nessas mensagens eletrônicas, apesar do grau de abstração da tecnologia que há por trás, além das emoções e sentimentos "tão humanos", o Acaso e o Mistério, com maiúsculas, como queria Buñuel, ou as sincronicidades, como teria dito Jung. Este aspecto - perceber dedos invisíveis da vida como tecelã - é que traz a imagem da caricatura de mim que tentei descrever... Com esses dedos invisíveis ela, a vida, bole na parte mais misteriosa e desconhecida de seres que se permitiram perguntar por que seriam eles tão misteriosos e se conheceriam tão pouco... E esbarra-se, num mundo fictício, virtual, em tudo aquilo para o que temos fechado os olhos num mundo de terra povoada de formigas e ares cortados por pássaros e insetos, que se devoram e procriam há muito mais tempo que nós...

Vou tentar um exemplo. Falei certa vez da visita do primo Nicolau. Ora, o primo tem a mania de apoiar a cadeira nas pernas de trás. Alguns dias depois da crônica, recebo uma deliciosa carta, que relata uma cena engraçadíssima e terrível, ao mesmo tempo. Um casal, já de certa idade, toma seu vinho e belisca seus tira-gostos com parentes e amigos, numa praça ensolarada de alguma cidade perdida na Itália. Como de hábito, ela se equilibra nas pernas de trás do banquinho do bar, à moda do primo Nicolau... De repente, um estrondo e ei-la estatelada no chão! Todos acodem, querem logo saber se se machucou. Todos, menos o marido. Ele, como num autêntico Fellini, levanta-se e proclama para que todos possam ouvir: Senhores, há trinta anos espero pela glória desse momento! Venham todos! Hoje pago bebida para todos!

É óbvio, há 30 anos ele "avisava" a sua esposa que apoiar-se nas pernas de trás da cadeira é perigoso, que ela poderia cair e se machucar. Convocou não só os que estavam no bar, mas os que passavam também. Pela noite a dentro, pagou bebida pra todo mundo. Minha amiga conclui: "Foi terrível... mas foi demais..." Agora, tentemos um fio da trama no urdimento que ignoro...

Chega pelo mesmo correio eletrônico um poema com um título sugestivo: Se Eu Tivesse um Anjo da Guarda. Nele, com toda liberdade, a autora se entrega a seus sonhos e devaneios e imagina um anjo como cada um de nós gostaria de sonhar ou ter. Num dado verso, é explícita, ao descrever o anjo: Ele nunca diria: "Eu não disse?"...

Aí, essas três palavrinhas bóiam como um desafio à compreensão... Esse terrível Eu não disse? - que os pais e as mães repetem com tanta facilidade para seus filhos e filhas... Esse Eu não disse? - que encerra uma glória macabra e o desejo de comemoração... Ah, quão longe dos anjos estamos nós! Acho melhor ficar aqui quietinho, como aprendiz de tecelão...




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