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Fios e farrapos07/01/03Uma amiga me confessou, há algum tempo, detestar a expressão vale de lágrimas, das orações cristãs. Contou que a idéia lhe evocava alguma imagem cruel, quando criança, imagem que não lembro. Todavia... talvez não tenha sido uma amiga, mas uma irmã ou outro parente. Poderia ser, ainda, alguém que jamais cheguei a conhecer bem. Nasce o sol e sua luz amarelada só destaca, na encosta voltada para oeste, o topo das árvores mais altas onde pequenas flores alaranjadas brilham mais coloridas. Mais tarde, todo o vale se encherá de calor e luz, após dias úmidos repletos de lágrimas de nuvens. Encontro auto-retrato de outra amiga, que o rabiscou com esferográfica e hidrográfica em papel ordinário, daqueles que me diziam, na infância, ser feito de bosta de vaca, informação mais útil do que os adultos podiam imaginar sem saber que eu comia papel. Ao lado do auto-retrato se lê: "stracciatella", que o dicionário me ajuda a traduzir como esfarrapada. "Prefiro sua voz ao telefone a ler suas lacônicas mensagens eletrônicas" - sentenciou outra, outro dia. O fim de ano serve de pretexto para o amigo surgir como excelente poeta e juntar aos votos e versos, magia. Recebo boas notícias de uma amiga sumida - nove anos, pouco mais! De outra chega palavra de carinho pelo solstício assinalado, e mais uma vez se perde a conta do tempo de desencontro. Tempos modernos de contato virtual tecido por mil intenções de infernos repletos e ricochetear de palavras invisíveis. Frágil tecido de fios e farrapos - amigos, namorados, amantes, irmãos, pai, mãe parentes, cão, gato e até o papagaio ou peixinho dourado, que é vermelho - tudo pretexto. Tudo busca saciar sede maior.
O sol já inunda todo o vale. O céu azul desafia a compreensão. O homem do rádio informa que o céu é de brigadeiro. Como o vale de lágrimas, lugar-comum. |
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