Nuvens sobre nuvens toldaram o céu e a alma. A umidade confirmou nossa condição tropical. Bichos e gentes se enfurnaram em suas tocas. Criança, me disseram serem os trovões sinal de arrumação no céu, pior, acreditei quando me explicaram que era barulho dos móveis que São Pedro e outros arrastavam. Por analogia, poderia supor a chuva como conseqüência de baldes e baldes esparramados em faina tão humana para lavar a morada de santos e anjos e querubins e madalenas arrependidas, fora o bando de finórios e dissimuladas quites com a confissão. Neste final de semana uma chuvarada lavou ares e mares e quase pôs fim à bucólica Peruíbe. Caiu muita água dos céus e, ilhada pelo temporal, uma amiga elucubrava sobre a possibilidade de todos saírem às ruas, vassouras e rodos em punho, em cada chuva forte de verão, para lavar calçadas e ruas, recolher o lixo que a enxurrada amontoa de sorte que quando o sol voltasse a brilhar a cidade estivesse um brinco. Um ditador poderia impor a prática por diferentes métodos de coerção. Um pregador poderia convencer os 'fiéis' a fazê-lo com ameaças de punição, aqui ou em um falso futuro. Qualquer ação coletiva, todavia, para limpar a cidade ou fazer a guerra, tem pouco significado se surge à sombra de uma ameaça. Agora, se a cidade brilhasse sob o sol, ruas e calçadas lavadas, por que cada um saiu por si, agiu sem nenhum aguilhão, ainda que estimulado pelo exemplo vizinho, teríamos não só um lugar mais agradável para viver e passear como um precioso embrião de sociedade. De uma sociedade a emergir de si, sem gurus a lhe indicar caminhos nem generais a lhe sombrear com espada. Mas vozes repetiriam: 'que adianta eu fazer se milhões continuarão a agir como sempre?' - e, antes da primeira folha, o sonho que brotava das elucubrações de minha amiga feneceria. |
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