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Horizontes04/05/06Se pairássemos como pássaro-satélite sobre nós e, portanto, sobre a Mulher e o Homem e pudéssemos, assim, nos descortinar em amplos oceanos e continentes, desapareceria em nós o colecionador, o arquivista, o burocrata dos mil amores que é amor nenhum. Limitados, todavia, pelo horizonte exíguo a que nosso mundo convexo obriga e, mais ainda, pelo cárcere em que o egoísmo nos encerra, resgatamos naufrágios com pesados escafandros em profundezas adormecidas, buscamos pistas em escuras cavernas de passados, amontoamos conchas e retalhos de vidas. Fabricamos sonhos e pontes e brinquedos de brincar e viajar, de matar e curar. Como bonde circular, vamos e voltamos e, no fim da linha, estamos de novo no mesmo lugar. Maio nos brinda com sua luz inigualável, delicada, oblíqua, a revelar minúcias e sutilezas que, no mais do ano, o brilho excessivo e a poluição escondem. Maio anuncia os céus esplêndidos das noites frias, de costas para o Sol. Órion domina em despedida o firmamento, a oeste e é, em si, espetáculo de emudecer e desafiar a compreensão, mas é a transparência do céu e a quantidade de estrelas, rara por aqui, que deslumbra. É ela também, atmosfera limpa, que rouba à Terra o mais tênue lençol que a abrigue do pouco calor que, de dia, seu corpo de rochas e pó bebe de um Sol esquivo. Passa um automóvel em velocidade pela esburacada, rua de terra. O frio penetra pelas narinas. Um bem-te-vi chama, sem resposta. O ar está imóvel. Um grilo, só um, sussurra em algum canto sem que se possa dizer de onde vem o som. O sol esquenta só de um lado. Passa um casal a tagarelar. As folhas frias estão aveludadas por finíssimas gotículas. A pequena corruíra não liga a nossa aproximação e cacareja seu pio mais grave. O horizonte que nos limita é outro e, ainda que do mais alto cume ou como pássaro-satélite, continuaria em nós. |
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