cronistaprendiz em 1966 Crônica do dia

Il pleut

11/03/09

Il pleut. Sob um céu de acinzentados, estendido a esfuminho do branco a plúmbeas densidades, gotas tamborilam frouxas sobre folhas grandes e plissadas que as reverberam como tambores e eu, ante a contradição do dia molhado falo ou penso, por automatismo, il pleut (il plê, na tentativa de representar a pronúncia). Assim, em francês, onde o verbo impessoal exige o pronome il, ele, mas um ele que não é ninguém, um ele apenas abstração, pois para nós, em português, não cabe um ele chove - ele quem, cara pálida? - exclamaria de bate-pronto a aluna vivaz e morena, enquanto a chuva ou garoa não se decide e vai e volta entre oscilações de luminosidade. Chove não me serviria, il pleut!

Março segue rumo a abril. Em nove dias será outono do lado de cá do fim do mundo e a primavera estreará com gáudio no hemisfério das terras, no topo do mundo. O pêndulo das estações continua a balançar e me traz frase antiga por evocação oblíqua: "mulheres não gostam de seguir normas e via de regra, para elas, é vagina." A autora conclui sua missiva, aqui apresentada em 1997, categórica: "A única regra seguida é: Deveis sangrar todo mês."

o pêndulo das estações
o pêndulo das estações

Desorientada, a mente salta de pedra em pedra sem propósito, sustenta-se de migalhas resgatadas de uma memória claudicante. Pára de cair água das nuvens, mas gotas escorrem de uma folha a outra, abaixo. Nenhum pretexto nem fato digno de se contar. Nada a justificar uma crônica.

É tarde. O dia se dobra ao meio sem nada para publicar. Publique-se, então, este nada, matambre de tempos de escassez, espinhos de caatingas espirituais.

Que novas intempéries desgovernadas fecundem vastos desertos!

|volta| |home| |índice das crônicas| |mail| |anteriorcarta 983


2454902.31409.957