Instante efêmero

 

O céu mais azul, a brisa mais fria e, acima de tudo a luz mais suave desta manhã valem mais que os cálculos precisos dos computadores da NASA. Proclamam o equinócio de março, anunciam que o outono começa por aqui. Para os que vivem no lado mais povoado e mais rico do Planeta, é a primavera que se faz anunciar. É fácil encontrar cálculos precisos, de uma exatidão cruel, em muitos computadores da Internet. Desta vez nem sequer vou mencioná-la, a exatidão O segundo e décimo de segundo, o instante preciso. Tamanha precisão reduz a efeméride a um momento tão fugaz, que só pode interessar a computadores e calculistas, não a seres cheios de falhas e imperfeições, como nós, como os computadores, nisso, pelo menos.

A diferença é que nossos erros não recebem rótulos e nem são classificados segundo uma lista de códigos. Se cometermos algum erro fatal, mas fatal mesmo, não há mais o que conversar e de nada adianta, por exemplo, desmaiar por alguns minutos para, depois, acordar como a Bela Adormecida. Fiquemos com o céu de um azul mais azul, sem medidas. Basta olhar para ele sabendo que todas aquelas estrelas estão lá, mergulhadas nesse azul, sem que possamos vê-las por que haver luz demais! Ou nem isso, apenas olhar...

Já vê, a leitora doce e tímida, que há um computador implacável dentro de nós. Loquaz, cheio de inutilidades como cinto de herói. O azul deveria poder nos falar manso, só com o acompanhamento da trilha de poucas cigarras, que ensaiam e não cantam, e o fundo da multidão de grilos. Há o ponteio de um pio ou outro. Muitas dessas vozes, em breve, calarão. O ar frio, que já se insinua, esconderá todos os insetos até o próximo equinócio, que virá anunciar a primavera no "lado de baixo" da Terra, subúrbios ricos em alimento na frágil camada onde a vida brotou. De lá, até as franjas do verão, eles surgirão de todos os lados e reproduzirão a mágica que não falha há milhões de anos e traz de volta cada mosca, de cada espécie, cada pernilongo, cada barata, cada abelha. Toda a multidão de insetos, muitos, mais de um milhão de tipos diferentes que o homem já conseguiu cadastrar em seu banco de dados.

Dizia preferir o azul mais intenso do céu sem qualquer medida ou explicação e, mesmo que quisesse, jamais poderia explicar porque o azul do céu era mais azul, quando era criança. Quem sabe, por esta única razão: por serem os olhos de criança; ou, talvez fosse mais azul mesmo. Afinal, o país tinha um terço ou um quarto da quantidade de gente que hoje disputa o ar, a terra e o mar. As indústrias, provavelmente, eram uma fração ainda menor, e outra fração, menor ainda, infinitesimal, media o número de automóveis, ônibus e caminhões. Mas talvez o céu fosse mesmo mais azul, pois havia ainda uma outra variável: era outro o céu! Não tenho provas, mas por razões irracionais, acredito ser o céu carioca muito mais azul que este, paulistano...

Já vai alto o sol. Não tanto como no verão. Nos próximos dias, continuará a declinar, e passará a cada vez mais baixo, sempre no rumo do norte, pois é aquele pólo que se volta agora para a estrela. Nós, do sul, nos voltamos mais e mais para o escuro e vazio do espaço, rumo ao inverno.

O equinócio está aí, anunciado por um tom de azul, com a noite e o dia iguais, seja para quem está na Patagônia, em plena Amazônia ou na Finlândia. Um instante efêmero. Os dias, que já vinham se tornando mais curtos desde o ápice do verão, continuarão a diminuir até o solstício de inverno, e as noites longas abrirão seus braços a espera das sementes do tempo de amor e fartura com que os homens sempre sonharam.

 

Publicada em 19 de março de 1999

 

 

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