Lápis 6B

22/09/97

Era doce e exalava ainda o perfume efêmero da inocência. A ingenuidade e a candura que, aos poucos, se tornariam sofrimento e desilusão. Mas os olhos daquela menina ainda tinham a vivacidade de quem tudo quer captar e seu sorriso de quase adolescente acariciavam ainda todos os sonhos.

Olho em seus olhos e, cheio de provocação, tiro do bolso uma caixinha muito bonita, envolta em papel celofane. Corto lentamente esse papel em dois para abrir a tampa da caixinha e se revela o brilho do papel de prata, que não é mais de folha de estanho, como as que outrora envolviam os chocolates devorados com singela verdade por outra menina mas, como também eu tenho deitado ao chão a vida, deixo cair como confete último o pedaço de papel de alumínio e faço saltarem os cilindros alvos de sua embalagem: - Tome. Fume um desses, são um raro prazer. - repito e insisto em oferecer os cigarros que prometem e se dizem capazes de proporcionar um raro prazer.

Ofereço de imediato meus punhos às algemas, diante de sua justíssima ira, leitor ou leitora. Era o que se desejaria fazer, passado o tempo da guilhotina, ao menos as algemas e o camburão. Cortem-lhe a cabeça como corruptor de menores, por atentado à inocência, por estupro da alma jovem ou sei lá porquê. E digo: seria uma indignação justíssima e eu, na minha fúria, teria ganas de cortar mesmo a cabeça, com uma adaga, de preferência.

Pois bem, eu juro que existem pessoas que dizem - Tome. Fume um desses, são um raro prazer. - e muitas outras mentiras mais absurdas ainda, sobre os venenos escondidos nos cigarros. Fazem isso de cara limpa, abertamente. Não só não são incomodados pelos senhores governantes, como estão todos mancomunados e, depois, repartem o butim. Tenho cá minhas dúvidas de quem fica com a parte do leão...

Você dirá: não se pode pôr a culpa numa pessoa. É toda um estrutura, que está aí há séculos, que foge ao nosso controle. Os anúncios são feitos pela agências e movimentam muito dinheiro e tudo isso gera muitos empregos. As pessoas precisam comer... Certo, dona Eufrásia, certíssimo. Esta frase, aliás, serve de pau pra toda obra, não é mesmo? O Projeto Manhattan alimentou muitas famílias também... As agências, dona Eufrásia, as agências não pensam e por trás das agências, por trás do governo, por trás de todas instituições há pessoas. Diga-me, cara amiga: se eu, tal qual um demônio, tentasse a menina como descrevi, a revolta e indignação seriam justas e, justa também, alguma punição para mim. Agora, fazer a mesma coisa com meios poderosos de comunicação, para atingir não uma única criança, mas milhões, não incomoda ninguém?

Não se trata de procurar culpados, é óbvio. Não me coloco de fora para examinar a questão. Tampouco queria falar dos profissionais da persuasão, em si. Algumas profissões, de fato, me parecem mais comprometidas com conceitos difíceis de defender. Tome-se o caso dos militares, por exemplo: são profissionais da guerra, a profissão pressupõe aceitar o querer guerrear. Quem vê em qualquer tipo de guerra uma coisa desnecessária e nociva, não poderia ser militar. Vender seus talentos e inventividade para as agências de persuasão, provavelmente implica em não perceber o papel que essas agências têm na evolução daquela estrutura, dona Eufrásia, que a senhora disse estar aí há séculos.

Aliás, este é o ponto. Como se constrói e como evolui essa estrutura. Que sociedade vimos construindo e continuamos a fazer. A imagem da menina suja que come chocolates me inundou e extraviei-me pelos descaminhos da indignação. Mas, voltando, é graças a toda energia, à inteligência, à inventividade aos dons e talentos de muitas pessoas, postos a serviço das agências de persuasão, que temos criado, cada dia mais, falsas necessidades, capazes de gerar ansiedades e desejos verdadeiros. Que o Homem busca, ainda que inconscientemente, algo que possa chamar de felicidade, um estado de bem-estar e equilíbrio fundamental em seu âmago, é óbvio. Se o convencemos, com todos os requintes da arte de convencer, de que para ser feliz precisa de um liqüidificador, ou um telefone celular ou um automóvel assim e assado ou de tudo isso junto... Esse cara pode desenvolver uma imensa revolta por não ter os meios para "sua felicidade". Pode ser capaz de ações terríveis, na ilusão de obtê-la...

Queria apenas dizer que é maravilhoso escrever aqui, no Mané (um dia apresento o Mané, este computador) mas tenho encontrado cada vez mais encantos em rabiscar essas bobagens em cadernos, com lápis 6B...


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