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Lembranças incertas


02/12/99

 

Eu era muito pequeno e a filhinha da dona da pensão, menor ainda. Na hora do café da manhã, ela subia numa cadeira e, com uma colherzinha de mexer xícara, ficava comendo manteiga como se fosse doce ou outra coisa de comer às colheradas. Manteiga pura! Uma colher atrás da outra. Eu ficava olhando, meio horrorizado ou, acho que ficava...

A imagem é de hoje, sem dúvida. Aquele tiquinho de gente, que de pé sobre a cadeira tinha o tamanho conveniente para se servir à mesa. Sem dizer palavra, lambia a colher da manteiga - ainda não existia margarina por aqui! - lambia e chupava a colherzinha de manteiga, dizia, com o prazer de quem come um pirulito e eu, a olhava, não com ânsia de vômito, que um moleque de cinco ou seis anos ainda não teve tempo para incorporar essas manias de falar ou sentir, mas com uma sensação que, hoje, traduziria assim. Ah, como se perde também a verdade dos fatos simples com o lustro das aparências...

Esta imagem, junto com muitas outras, jaz num limbo entre aquilo que fulgura nítido na lembrança e tudo que já esqueci. É o limbo da memória, um território de vultos e névoas, onde o real se mistura com sonhos.

Vivemos anos a fio com esses fantasmas sem dar atenção ou importância a eles e quando se quer lançar alguma luz nessa região cinzenta, é bem provável já não ser mais possível ouvir mãe, pai e outros, que poderiam contrapor a nossos limbos oníricos uma perspectiva racional e adulta, pelo simples fato de serem mais velhas.

Todavia, um jovem precisa de tempo para poder sentir o que os coroas imaginam que seria bom e necessário ele sentir. Esse tempo é que é o problema: o tempo o transforma, aos poucos, num ex-jovem com algumas imagens e vagas sensações de outras tantas comedoras de manteiga às colheradas, ou algo equivalente, misturadas certas lembranças incertas...

 

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