Manchete

15/09/97

Pascoal ajeitou de novo os óculos no nariz, limpou um pigarro e leu, desta vez, em voz alta.

"Joana Angélica foi uma mulher muito importante". Parou, ia falar qualquer coisa, calou. Continuou: "Além de importante era ótima mãe de família e, dizem, muito bonita." Aí, o Pascoal parou.

Jogou os papéis sobre a mesa, jogou os óculos por cima, passou as mãos pelos cabelos que lhe restavam e cruzou os dedos, por trás do pescoço, procurando se inclinar na cadeira desconfortável. Respirou fundo, o que ajudou a engolir uns dois ou três palavrões renitentes, que lhe voltavam à garganta, contou até dez, depois, até vinte. Aí olhou nos olhos aquela coisa frágil, de pé, do outro lado da mesa, com os dedos entrelaçados, para esticar os braços com as palmas das mãos para baixo. Puro charme e sedução. Os olhos eram lindos, também. Os seios, jovens, se insinuavam sob o pano leve da blusa. Os cabelos estavam presos e, por isso mesmo, estimulavam ainda mais a imaginação à sonhá-los soltos, como a tão cantada moldura natural... Foi quando o Pascoal reparou que havia se esquecido, completamente, o que ia falar...

Malvina, assim se chamava, sentiu sua primeira vitória e, como o Pascoal, calou. Ele recompôs-se fingiu arrumar as coisas sobre a mesa, para dar uma rápida olhada no texto, ah, sim, lá estava, a tal da Joana Angélica... Agora, já quase doce, perguntou à nova repórter, recém saída dos bancos da PUC:

- Pelo amor de Deus, quem é Joana Angélica? Não foi um velho que morreu?

Era um jornal popular, a família da moça tinha relutado quando ela quis ir trabalhar lá. Ela insistiu explicou que o mercado estava fogo, o desemprego grassava, disse que deviam considerar uma verdadeira bênção dos céus, quase um milagre, etc. Agora, estava lá, diante do Pascoal, esperando como quem espera um veredicto no tribunal. Falou.

- Sim, foi. Tinha 63 anos, mas o atropelamento foi na esquina da Maria Quitéria com a Joana Angélica, e eu achei que seria mais legal começar contando quem foi Joana Angélica...

O Pascoal olhou outra vez no fundo dos olhos de Malvina e disse - quer dizer, ia dizer, mas sufocou, respirou e, por fim, falou: - Não quer sentar? Pegou o telefone e mandou trazer dois cafés. Pensou: pode não saber nada de jornalismo, mas sabe sentar! Era uma matéria absolutamente idiota, sobre violência do trânsito, igual a milhares já feitas: o automóvel é o vilão, o pedestre a vítima indefesa, como coadjuvantes, a impunidade dos criminosos e a omissão das autoridades. Pronto. Se for o caso, um molho com os perigos da mistura de álcool e volante. Mas mesmo se tratando de uma matéria idiota, agora, quem parecia um idiota era o Pascoal. Tinha descoberto que os lábios de Malvina eram carnudos. Como não percebera isso antes? Talvez porque ela estivesse sem batom? Ia perguntar se o atropelado morrera no local, se o corpo estava coberto por jornais, se alguém, anônimo, tinha acendido uma vela, se a polícia demorou para chegar, essas trivialidades, mas deu mais uma olhada nas primeiras linhas da matéria da nova repórter e perguntou:

- Ela usava batom?... Quer dizer, essa tal de Maria Angélica, era bonita mesmo, assim como você?

Houve um tempo em que os jornais respeitavam o leitor. Dizia-se, no primeiro parágrafo, de forma sintética e direta, o assunto abordado. Se o leitor não estivesse interessado naquilo, pulava logo para a matéria seguinte, pra próxima manchete, pra última página ou jogava fora o jornal. Hoje, na maioria das vezes, não tenho paciência para brincar de gato e rato com o repórter, e por estar do outro lado da página, não estou vulnerável, como o bom Pascoal, aos atributos ocultos da reportagem - fatores importantes, sim, mas invisíveis no texto impresso.

Depois de muita conversa, o Pascoal perguntou: - e o nome? O nome do atropelado, você pegou? Malvina havia esquecido esse detalhe, como outros. Estava muito concentrada na coisa da pesquisa, você sabe. Encantada com a idéia de fazer uma profunda pesquisa sobre a vida e a obra de Joana Angélica. Se sobrasse tempo, poderia investigar, também, a Maria Quitéria, mas gostava mais do nome da primeira... Não, não tinha o nome do morto, um pequeno esquecimento... O Pascoal não vacilou. Deixa comigo que eu faço o título. Quantos toques? Quantos toques, mesmo, tem que ter? Até trinta? Deixa comigo...

Naquela noite Malvina e Pascoal saíram para jantar. No dia seguinte saía o jornal com a matéria da Malvina e o título do Pascoal: "Morre Fulano, por atropelamento".

 

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