Ao ouvir alguma peripécia dos tempos de colégio, ela logo sugeriu que as contasse aqui. Tanto bastou para iniciar um processo em que, perplexo, testemunhei a mutação das cores daquelas lembranças. Sem muito esforço, percebi como evocamos, até mesmo em feitos de um menino que fomos há mais de meio século, o que incensa a própria vaidade.
O que nos ocorre espontaneamente são relatos de aventuras em que fomos, de algum modo, heróis. Só com esforço nos voltam proezas humilhantes. A partir daquela sugestão, se tornou cada dia mais nítido, para mim que, ao longo de toda a vida, nos pintamos, para nós mesmos, heróis. Somos, de algum modo, nossos maiores fãs, nos idolatramos no subterrâneo.
E é tudo muito simples, óbvio demais: tudo que nos magoou continua como espinho prestes a nos ferir de novo se o formos resgatar. Preferimos, então, colher apenas as rosas, que perfumaram e perfumam nossa vaidade.
Por exemplo, certa vez, aos doze anos, conversava eu com colegas, num canto do amplo pátio de recreio do Colégio de São Bento enquanto bebia do gargalo de uma das velhas garrafas de vidro de Coca-Cola. De repente, splash! O cocô de um dos urubus que, muito alto, pairavam sobre nossas cabeças, acertou com precisão a boca da garrafa de minha bebida. É óbvio, sobrou para minha mão e para a camisa azul claro.
Pior do que a imundice, todavia, foi me ver alvo de troça e chacota, de risos e gozações do grupo. Tudo mais que eu disser sobre o episódio, não será memória, mas invenção. Por exemplo, que deu vontade de sumir. Deve ter dado, mas não sei. Da explosão do cocô em diante, tudo vira ficção.
Esta é uma memória que fácil se esquece. Dorme lá - onde? - e seguimos como se nada tivesse acontecido. Nos entusiasma contar momentos de sucesso, façanhas do eu herói. Que viva também o eu anti-herói.
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