Meninas e meninos


12/12/97


"As meninas são diferentes dos meninos". Com estas palavras um ex-ministro abriu sua coluna num jornal. O olhar indecifrável do Primo Nicolau, ali, se soma a um sorriso mais significativo que a constatação ministerial. Acredito em ex-ministros brasileiros tanto quanto em Papai Noel, já o disse. Neste caso, o interesse não é pela diferença, notória, inevitável, necessária e mais ululante que todos os óbvios de Nelson Rodrigues juntos. O ex-ministro, que é também professor da USP, me informa o pasquim, quer apenas comentar uma entrevista de outra acadêmica, publicada em uma revista que, curiosamente, se chama Praga. É... - começa o primo por trás do riso enigmático - os economistas são mesmo uma praga... e deixa aos anéis de fumaça de seu charuto as entrelinhas do comentário.

São tão surpreendentes as elucubrações ministeriais sobre meninos e meninas, com o fito único de dizer que sua colega tem sentimentos humanos - coisa que ele considera inadmissível num economista! -, que deixo a quem quiser a possibilidade de conferir o original, na íntegra. A certa altura, escreve, com todas as letras: "É impossível discutir masculinamente com a professora Maria da Conceição Tavares. Ela não consegue separar as coisas como fazem os homens, particularmente economistas." O ex-ministro, um homem e, portanto, na sua opinião, capaz da fragmentação que permite tratar um problema por vez, isolada e abstratamente, tornando-o por isso, um especialista, acredita que "Não interessa quem vai ficar desempregado. Será um 'agente econômico' que pode ou não acabar com a própria vida." - diz, referindo-se a outro "agente econômico", que pôs fim a própria vida por ocasião do confisco Zélia-Collor. Critica na colega exatamente o fato dela discutir como mulher - "de forma pessoal, com empatia pelos sofrimentos do desempregado e do mais pobre, revoltada contra os efeitos cruéis desta ou daquela medida."

A esta altura, Primo Nicolau colocou um ponto final nas falas do ex-ministro: por isso, primo, eu só me tenho me interessado pela opinião das mulheres. Seja em economia, em política, saúde, educação, telecomunicações, culinária, ou no que for - só não admito em futebol! Os homens, enxergam, como diz o cara aí, apenas minúsculos pedaços de um quebra-cabeças, daqueles gigantescos, de milhares de fragmentos... Se as mulheres conseguem uma visão mais global, se sempre misturam economia, com política, com história, com sonhos e intuições, tanto melhor! A vida é uma coisa só. Querer picá-la assim, em pedacinhos, como se faz com um frango assado, não ajuda a compreender nada, ao contrário. Olhei o primo, balançando-se nas pernas de trás da cadeira e esmagando o toco de seu charuto no cinzeiro, como se quisesse apagar ali, também, uma conversa que pouco despertava seu interesse...

Para minha surpresa, no entanto, ele retomou: primo, deixemos de lado os economistas e suas regras do jogo, que todo mundo está mais careca que o próprio de saber, cuidam apenas do jogo e ignoram, por completo os jogadores - isto ele deixou muito mais explícito do que sexo em filme da "boca" - deixemos de lado, pois o que intriga mesmo nesse artigo são as voltas e trapalhadas que ele faz para justificar as diferenças... Isto sim! Aí temos o calcanhar de Aquiles dos especialistas, que o ministro reverencia com tantos salamaleques. O médico que só entende dos primeiros 15 centímetros do intestino grosso e se recusa a considerar todo o resto do organismo! O primo estava inspirado, Servi mais um gole de um veneno especial que me deixaram por aqui e o deixei falar.

Dividiu com o santo o veneno e continuou: você sabe, não sou formado em nada, mas tenho meu laboratório particular e muitas horas de vôo em certas pesquisas - e, de novo, o riso enigmático - a mulher é mulher porque o projeto de tudo isso, seja lá de que autoria for - Deus ou o Diabo, a Natureza ou o Acaso - previa tarefas e sinas para ela diferentes daquelas que também previu e fez com que o homem fosse homem, diferentes em tudo, homem e mulher, no hard e no software. E o cara vem com essa, de que "Educadores masculinos consideram as meninas fofoqueiras e complicadas", e outras "porcas" para atirar às "pérolas"? Sim, pois ele deve achar que porcas e parafusos são coisas de macho e as meninas, são todas umas pérolas, principalmente as bonitas. E, depois, afirmar com empáfia "Psicólogos explicam"! - ora, com um argumento desses posso explicar até a virgindade de Maria, no meu quintal também tenho um curral de psicólogos, sempre prontos a grunhir a explicação que eu precisar... Bela explicação, não primo? Os homens são machos porque têm um sexo diferente do da mãe!

Não dava mais para interrompê-lo. Ele se empolgou. Pegava o artigo do acadêmico ex-ministro e lia e relia algumas frases: "...tem círculo restrito de amigas, a melhor amiga e as meninas que não fazem parte do grupo" O cara é louco! - vociferava - nunca parou para olhar meninas a brincar, tudo que sabe pescou nos livros ou no seu curral particular de psicólogos! E lia mais: "'desenvolvem' mais tardiamente que os meninos as características de personalidade necessárias ao convívio na empresa, no mercado ou na sociedade moderna de indivíduos" - aqui, primo, há um eufemismo fantástico! Indivíduos, pra ele, são os números, as estatísticas, o tal do "agente econômico" que morre anônimo na fila do INSS, uma coisa abstrata, como gosta de dizer - nunca um ser humano!

Primo, é por isso que eu adoro as mulheres...


Publicada com atraso em 13/12/1997



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