Outro dia falei do fascínio que nós, ao contrário
dos deuses, seres muito relativos - relativamente potentes, já
que, às vezes podemos, às vezes, não; relativamente
cientes, graças à ousadia e curiosidade de Eva,
aliás e só relativamente presentes, pois se cá
estamos, lá não podemos estar - falei de o quanto
nos encanta a idéia de exatidão matemática.
E aí está: é a idéia que nos embasbaca,
muito mais que a exatidão. Talvez um trauma das dízimas
periódicas, espécie de vacina que se toma em tenra
idade e nos deixa marcas para o resto da vida...
Soa terrível saber que sempre há a possibilidade
de ser mais preciso, por exemplo, ao indicar o resultado da simples
divisão de dez por três - necessidade que pode já
ter ocorrido aos primeiríssimos: Eva, Adão, Abel e Caim.
Se digo 3,3 está correto, mas é pouca a exatidão.
O outro replica: melhor 3,33 e está mais certo, mas exato,
exato, ainda não. E alguém escreve: 3,3333333333333333333333
- e de nada adiantaria tomar todo o espaço da crônica
apenas com o algarismo três: que continuaria quase,
para alguém logo lembrar que, se falta o quase, falta tudo...
Aqui mesmo, nesse mar de computadores ligados por fios, cabos,
satélites e não sei que mais, você pode encontrar
diferentes cálculos, de fictícia precisão
matemática, de quantos somos, nós humanos, a cada
momento, a cada segundo. Não me alongo no assunto, pois
um amigo já o fez: há um link aí embaixo
que leva os interessados direto à sua página. Sobre
estatísticas e estimativas a quantidade de piadas já
mostra que sabedoria coletiva entende a utilidade e significado
dos cálculos. Desde aquela do sujeito que não sabia
nadar e morreu ao pular no lago cuja profundidade média...
até a que supõe o bem estar do sujeito que está
com os pés numa fornalha e a cabeça num freezer.
Intriga-me, no entanto, o indício de uma mudança
que, imagino, deve estender-se a todos os conhecimentos acumuladas
pelo Homem. Falo da aceitação e convivência
pacífica com este eletrodoméstico, como diz Mano
Véio. A nossa relação com os números
já mudou. Cálculos longos ou complexos são
coisa para o computador. Desapareceu o homem que calculava. Morreram
as tábuas de logaritmos. Saber o valor de pi com 30, 40,
70 decimais não dá mais uma linha, nem no obituário
dos jornais. Quem ainda faz a conta de cabeça? Espera-se
que o outro, com a maquininha e, quase sempre, do outro lado do
balcão, calcular - e acredita-se na máquininha,
posto que não é humana, como o errar... Quantos
já pagaram a mais, pois além do errar é humano,
também, o trapacear...
Livres da enfadonha tarefa de calcular a raiz quadrada de 17,
por exemplo - lembram como era chato! - o que fizemos desse tempo
que nos sobrou? Em tempo: a maquininha informa-me que a dita raiz
é: 4,123105625618. Por que duvidar? Da próxima vez,
próxima não, que não lembro de jamais ter
precisado disso - se porventura um dia quiser um quadrado com
exatíssimos 17 centímetros quadrados de área,
tomarei o cuidado de fazer o lado com aquela medida... na segunda
casa decimal, já discutimos a espessura de um fio de cabelo...
Na sexta casa, ali naquele cinco, estaríamos discutindo
diferenças já invisíveis para qualquer microscópio
ótico. Variações como a diferença
entre o comprimento do verde e do azul, por exemplo! Mais um pouco
e a discussão seria sobre a estrutura atômica do
que quer que fosse, do significado de camadas de elétrons
e se esses ocupam espaço, ou não... Dona Sabrina,
querida, quer saber a raiz quadrada de 17 com 60 decimais?
Desculpem o vício antigo. A pergunta era: o que fizemos
de todo o tempo que nos sobrou? O que faremos de todo tempo que
nos sobrará, com certeza, a medida que as máquinas
façam, cada vez mais, as tarefas mais chatas, impostas
ao Homem como castigo, pelo Criador, e todas as outras, que não
lhe foram impostas mas, sim, por ele mesmo inventadas, para se
ocupar em afazeres de músculos e neurônios. As máquinas
se multiplicam e, raras vezes nos detemos a imaginar como eram
"substituídas" antes, qunado ainda nem existiam.
Por escravos explícitos primeiro, e de outros tipos, depois.
Há maquinas, até, para nos escovar os dentes!
A grande oportunidade do Homem se ver, de repente, frente a frente
com ele mesmo e, depois do susto inevitável, ensaiar os
primeiros passos em direção ao que busca ou sente,
no fundo de si, se esboça no horizonte... Miragem?
Página sobre os cálculos da população "instantânea" mundial.
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