Miragens


06/09/97

Outro dia falei do fascínio que nós, ao contrário dos deuses, seres muito relativos - relativamente potentes, já que, às vezes podemos, às vezes, não; relativamente cientes, graças à ousadia e curiosidade de Eva, aliás e só relativamente presentes, pois se cá estamos, lá não podemos estar - falei de o quanto nos encanta a idéia de exatidão matemática. E aí está: é a idéia que nos embasbaca, muito mais que a exatidão. Talvez um trauma das dízimas periódicas, espécie de vacina que se toma em tenra idade e nos deixa marcas para o resto da vida...

Soa terrível saber que sempre há a possibilidade de ser mais preciso, por exemplo, ao indicar o resultado da simples divisão de dez por três - necessidade que pode já ter ocorrido aos primeiríssimos: Eva, Adão, Abel e Caim. Se digo 3,3 está correto, mas é pouca a exatidão. O outro replica: melhor 3,33 e está mais certo, mas exato, exato, ainda não. E alguém escreve: 3,3333333333333333333333 - e de nada adiantaria tomar todo o espaço da crônica apenas com o algarismo três: que continuaria quase, para alguém logo lembrar que, se falta o quase, falta tudo...

Aqui mesmo, nesse mar de computadores ligados por fios, cabos, satélites e não sei que mais, você pode encontrar diferentes cálculos, de fictícia precisão matemática, de quantos somos, nós humanos, a cada momento, a cada segundo. Não me alongo no assunto, pois um amigo já o fez: há um link aí embaixo que leva os interessados direto à sua página. Sobre estatísticas e estimativas a quantidade de piadas já mostra que sabedoria coletiva entende a utilidade e significado dos cálculos. Desde aquela do sujeito que não sabia nadar e morreu ao pular no lago cuja profundidade média... até a que supõe o bem estar do sujeito que está com os pés numa fornalha e a cabeça num freezer.

Intriga-me, no entanto, o indício de uma mudança que, imagino, deve estender-se a todos os conhecimentos acumuladas pelo Homem. Falo da aceitação e convivência pacífica com este eletrodoméstico, como diz Mano Véio. A nossa relação com os números já mudou. Cálculos longos ou complexos são coisa para o computador. Desapareceu o homem que calculava. Morreram as tábuas de logaritmos. Saber o valor de pi com 30, 40, 70 decimais não dá mais uma linha, nem no obituário dos jornais. Quem ainda faz a conta de cabeça? Espera-se que o outro, com a maquininha e, quase sempre, do outro lado do balcão, calcular - e acredita-se na máquininha, posto que não é humana, como o errar... Quantos já pagaram a mais, pois além do errar é humano, também, o trapacear...

Livres da enfadonha tarefa de calcular a raiz quadrada de 17, por exemplo - lembram como era chato! - o que fizemos desse tempo que nos sobrou? Em tempo: a maquininha informa-me que a dita raiz é: 4,123105625618. Por que duvidar? Da próxima vez, próxima não, que não lembro de jamais ter precisado disso - se porventura um dia quiser um quadrado com exatíssimos 17 centímetros quadrados de área, tomarei o cuidado de fazer o lado com aquela medida... na segunda casa decimal, já discutimos a espessura de um fio de cabelo... Na sexta casa, ali naquele cinco, estaríamos discutindo diferenças já invisíveis para qualquer microscópio ótico. Variações como a diferença entre o comprimento do verde e do azul, por exemplo! Mais um pouco e a discussão seria sobre a estrutura atômica do que quer que fosse, do significado de camadas de elétrons e se esses ocupam espaço, ou não... Dona Sabrina, querida, quer saber a raiz quadrada de 17 com 60 decimais?

Desculpem o vício antigo. A pergunta era: o que fizemos de todo o tempo que nos sobrou? O que faremos de todo tempo que nos sobrará, com certeza, a medida que as máquinas façam, cada vez mais, as tarefas mais chatas, impostas ao Homem como castigo, pelo Criador, e todas as outras, que não lhe foram impostas mas, sim, por ele mesmo inventadas, para se ocupar em afazeres de músculos e neurônios. As máquinas se multiplicam e, raras vezes nos detemos a imaginar como eram "substituídas" antes, qunado ainda nem existiam. Por escravos explícitos primeiro, e de outros tipos, depois. Há maquinas, até, para nos escovar os dentes!

A grande oportunidade do Homem se ver, de repente, frente a frente com ele mesmo e, depois do susto inevitável, ensaiar os primeiros passos em direção ao que busca ou sente, no fundo de si, se esboça no horizonte... Miragem?


Página sobre os cálculos da população "instantânea" mundial.

 

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