Evitamos falar da morte.
Procuramos viver fingindo sermos eternos. Criamos a imagem de uma espécie de bruxa, com uma foice, que escolhe vidas ao acaso para ceifar. Nos afastamos do que é vivo - e portanto, morre - em cidades de cimento e asfalto e ficamos distantes, assim, da terrível luta que tanto fascinou Darwin há pouco mais de cem anos. Nem mesmo temos mais que lavar, preparar e enterrar as pessoas com quem convivemos toda uma vida - há toda uma estrutura comercial medonha para disputar nossos mortos.
As crianças lidam com naturalidade com a morte, quando pequenas, bem pequenas. Se interessam e costumam olhar cheias de interesse os primeiros bichinos que vêem morrer. Uma barata, outro inseto, seja lá o que for. Não raro, se interessam em experimentar matar e, se conseguem levar a cabo o experimento, ou matam por acaso, isso deixa uma impressão forte, quiçá, para toda vida. Nós é que, quase nunca, sabemos lidar com crianças, nem com a morte.
O dia chegou transparente e azul. De luz intensa e brisa fresca, muito diferente da véspera, quando o ar estava tão sujo que se duvidava da cor do céu. Chegam mais pássaros com a luz bonita do outono e eles cantam e pipiam mais que o habitual. Dão a impressão de uma alegria maior. Lá no alto, no azul intenso, um gavião paira, sem mover as asas.
Há vários dias não chove e os carros, mesmo sem correr, levantam muita poeira do chão de terra. As folhas também já começam a pedir água, para um banho e para beber. Assim, só ventos podem explicar a mudança no azul do céu, tão opaco ontem, tão brilhante hoje. Ventos noturnos teriam feito a limpeza.
É preciso haver renovação. Um dia acaba, para o outro chegar. Nosso medo de falar da morte, nosso desejo oculto de ser eterno - essa inveja maior dos deuses - é como se quiséssemos que um dia muito bonito não acabasse jamais. Um dia que permanecesse uma eterna manhã. Já ouço vozes que concordam: "sim, não seria ótimo? Seríamos jovens para sempre, com toda a energia e saúde que a juventude tem. Por que não?" E nossos filhos? E nossos netos? E os netos de nossos netos? Pode uma árvore guardar frescas e viçosas todas as suas gerações de folhas? Pode haver seiva e espaço para novas folhas sem a morte das velhas?
O sol sobe e faz brilhar algumas teias de aranhas, armadilhas para insetos voadores. O ar começa a esquentar. As flores cor-de-rosa da velha árvore são em número maior que as folhas que ainda não caíram. O chão, embaixo, tem um tapete de folhas e flores mortas. O nosso medo da morte, da morte física desse corpo que é o que de nós conhecemos, se estende a toda outra morte, interior, psicológica, e nos faz carregar de um dia para o outro as misérias da véspera.
Nada mais difícil do que despertar virgem a cada manhã. O sono faz sua parte - e não é pequeno seu trabalho! Sempre me espanto de encontrar um corpo renovado e olhos mais capazes de enxergar. Os primeiros momentos, o curto período de passagem do sono - e sonhos, eventualmente - para os desafios concretos do dia a dia, são cruciais. Mas é difícil estar atento a tudo que se passa, em nós, aí. É como se saíssemos do mar para voltar à praia. Temos que enfrentar a zona da arrebentação. Pode haver ressaca, pode ser perigoso...
É preciso falar da morte com naturalidade. Saber que vamos envelhecer e morrer, sem rancor, sem o recôndito desejo de ser eterno e jovem. Mas minha perspectiva do universo é muito precária: tem por monte para descortinar os horizontes, a altura de meu ventre e do fosso de meu umbigo tento entender. Dessa perspectiva, a minha morte é o fim, o fim de tudo!
O sol já vai mais alto. Já não se vêem mais as teias das aranhas. O dia promete calor e o azul do céu está um pouco mais pálido. Uma cigarra ainda ensaia seu canto.
Publicada em 07 de abril de 1999
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