desenho de Luciana Guidorzi colorido pelo cronista
É uma manhã tímida
de sol. Um grande véu no azul do céu mal deixa sombras perceptíveis
nos verdes e cores que cobrem a terra. Mesmo assim, a luz destaca nervuras
de folhas no ar úmido e parado.
Em seus cíclos, o planeta vira para o Sol o polo norte - mais um
pouco, estaremos no vértice da órbita e as longas noites ao
sul do equador começarão a diminuir. Mesmo assim, há
borbololetas e outros insetos. Muitas folhas permanecem verdes e cheias
de vida. Há frutos, e pássaros a procurá-los. Aberta
de supetão, uma janela faz um bando de rolinhas levantar vôo...
É provável que este seja o nosso último encontro aqui.
O Janelas destruiu metodicamnte o pecê - este texto está sendo
composto no Macintoch, mas não consigo entender-me com ele e os pouquíssimos
programas disponíveis. Tudo fica esquisito. Olho o texto nesta tela
e tudo me é estranho... Não parece o texto que queria escrever.
O espaço entre as palavras é muito pequeno, apertado. Nunca
sei se ele existe, ou não... Os tipos são diferentes, este
computador jamais soube uma só palavra em português... pior,
o pior de tudo: o Aurélio não pode se aninhar em suas entranhas.
O mais provável é que ninguém veja este último
texto, depois de tanto tempo e tanta frustração: voltar aqui
e reencontrar sempre a mesma coisa, no que deveria ser renovado a cada dia...
Cada coisa começa a me parecer um signo da própria vida, como
um aviso a lembrar e chamar a atenção. A cada dia seria preciso
estar livre de todo ontem para permitir ao novo dia ser. Incapazes dessa
renovação, carregamos todos os ontens, nossos e de tantos
milênios, para recepcionar cada manhã.
Idolatramos a palavra e deixamos de lado o viver, ao preferir ficar com a
descrição da vida, com as idéias do que deve ser e
de como não deve ser. Repetimos, envaidecidos, histórias que
já não são mais. Na verdade, ainda assusta imaginar
que dentro em pouco, esta montoeria de palavras pode sumir para sempre.
São as regras da GeoCities: depois de um certo tempo inativo
(não sei exatamente quanto) o site é eliminado dos computadores
na Califórnia...
Talvez tente fazer uma cópia de tudo, talvez nem isso. (No momento,
não tenho qualquer cópia de nenhum dos dois sites.) Se assim for,
este último suspiro ficaria monotonamente repetido, até
se cumprir o prazo fatal. Vacilo diante da possibilidade e eis a explicacão:
Certa feita um amigo descreveu-me em minúcias sua luta para libertar-se
do vício de jogar pinball. Contou uma luta gigantesca que,
no final, o obrigava a evitar até as ruas onde sabia existir a tentação.
Pois bem, só pude compreender por inteiro o drama desse amigo quando
ficou claro, para mim, que tinha me tornado um "dependente químico"
de computador e Internet! (A química, dona Sabrina, está no
cérebro, é óbvio.) É absolutamente assustador!
Falamos muito de obsessões aqui, mas a única obsessão
que, de fato, mereceria ser assim chamada era essa. É terrível
ter os pensamentos dominados, irrevogavelmente, não poder escolher
o que pensar. Ser totalmente incapaz de afastar um tema da mente e, impotente,
verificar que esse tema é único e se infiltra, à revelia,
mesmo quando se supõe estar tratando de outros assuntos... Mas isso
ainda é pouco, para descrever por inteiro o obsecado e, profilaticamennte,
desisto de fazê-lo aqui...
Ora, ou se vê a verdade de que é preciso largar toda bagagem
para saudar o novo dia, ou não. Assim, penso em cancelar qualquer
possibilidade de acesso à Internet e deixar este texto mais alguns
dias, conforme as regras da GeoCities. Digo num exercício
dos "informáticos anônimos": que seja este o primeiro
peso cortado. É muito pouco, bem sei, mas o jogo começa com
um pontapé inicial...
Publicada em 26 de maio de 1998