O casal se entreolha. Quase sorri. Em seguida, compenetram-se ou fingem se compenetrar e olham para a frente antes de dizer boa noite. A cabeça levemente inclinada, o olhar quase oblíquo, de baixo para cima. Cabelos cuidadosamente endurecidos com os grudes da moda. Brincos discretos nas orelhas da mulher - nele, jamais seriam admitidos! O trabalho do maquiador transparece nos dois. A gravata é sempre discreta, neutra, quase não se nota e serve de suporte para os dois microfones "lapela" do suposto marido; os dela, estão na gola do tailleur, mais conservador que a gravata do companheiro.
Não se trata de uma cena da novela das oito, que começa às nove. Descrevo apenas a abertura do jornal das oito, que sempre começou às oito, mais ou menos, apesar do nome da novela. Coisas da televisão. Talvez, por ser um sinal gratuito, impossível de controlar e cobrar, não liguem para essas ninharias. De qualquer forma, é notório que o Jornal Nacional se transforma aos poucos, de fato, na novela das oito.
Sexta-feira passada, uma amiga me perguntou se eu sabia que aquele era o dia mais provável para terem sido concebidos os bebês que deverão nascer no próximo dia primeiro de janeiro. Argumentei, só por provocação, que o período de gestação humano não é tão rigoroso assim, varia entre 38 e 40 semanas e portanto não se deveria fixar um único dia para a concepção, mas uma ou duas semanas. Ela explicou que apenas repetia o que ouvira no noticiário da tevê...
Mas este é um assunto banal, mera curiosidade matemática, que aponto apenas para sublinhar que a escolha dos assuntos é tão importante quanto a maneira de tratá-los. E é na escolha dos assuntos e no tempo dedicado a cada um, que o Jornal Nacional vem mostrando sua nova face. Fico com a impressão que o departamento de novelas ganhou uma disputa interna e tomou as rédeas do noticiário ao departamento de jornalismo.
Não duvido nada que, mais um pouco, se chegue a receitas de bolo disfarçadas de reportagens. E não seria por serem as verdadeiras notícias, indigestas, as mais difíceis de engolir têm dado ótimos "roteiros". Sim, ninguém discute o profissionalismo e competência da pequena Hollywood brasileira, da grande fábrica de Jacarepaguá de intermináveis e repetitivas novelas.
Ao mesmo tempo, o jornalismo das organizações do "doutor Marinho" tem uma história cheia de ambigüidades, com vários momentos obscuros e nebulosos, desde muito antes de existir sua tevê. Consta que no pior período da ditadura milicar a página internacional de O Globo era editada e "fechada" no consulado norte-americano, que ainda funcionava com embaixada, pois Brasília era muito criança. Depois, todo mundo lembra da participação da tevê nas diversas eleições etc. Os exemplos são muitos.
Os especialistas em derramamento de lágrimas - roteiristas, diretores, atores etc. - sabem perfeitamente como montar, editar e mostrar situações de forte conteúdo emocional. Sabem, também, que o grande segredo das histórias em pílulas é insinuar, o tempo todo, a iminente revelação de algum segredo "fundamental". O primeiro truque abala a razão dos espectadores, os torna menos capazes de criticar o que vêem. O segundo, apela para certo tipo de curiosidade e prende a vítima à história interminável.
Não é a curiosidade sadia que Einstein chama de "planta frágil da curiosidade científica" nem aquela de querer desvendar o que se passa dentro do próprio ser. É a curiosidade da fofoca, de querer saber sobre a vida e intimidadas de outras pessoas, o mesmo impulso psicológico que leva cada uma das vizinhas ao seu portão para, excitadas, trocar informações sobre a vida dos outros vizinhos. Você pode chamar de fofoca ou maledicência. Eles, de Hollywood ou do Jardim Botânico, dirão que é a grande arte do entretenimento. São especialistas em manter gente distraída, em evitar que cada um possa ter o terrível encontro consigo mesmo.
Com essas e outras observações, está no ar o jornal nacional.
Publicada em 14 de abril de 1999
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