Quem não gosta de novidade? As coisas novas tem uma energia própria e peculiar. Seja o broto minúsculo da planta ou o filhote recém-nascido do bicho, até o do bicho homem; seja a obra inédita das mãos ou cabeça do Homem - diante das coisas realmente novas, qualquer um fica embevecido.
O fascínio diante do novo traz junto sua penca de desafios. Por gostar da novidade vem o impulso de querer eternizá-la... Ah, o sonho da eternidade, da perfeição imaculada, incorruptível, íntegra! Marca que trazemos de um passado milenar e que aflora diante de toda ameaça de um fim! É muito difícil aceitar com naturalidade que o que é prazeroso possa acabar, como todas as coisas. No entanto, o prazer também nasce e morre, como tudo, absolutamente tudo., Matamos a novidade ao tentar eternizá-la e o novo se torna mera repetição.
Outro desafio da penca é aquele que costumo chamar de complexo de virgem. Ele já está implícito no parágrafo acima mas, se me for permitido, explicarei com um exemplo pessoal, de quando tinha doze anos.
No colégio dos monges beneditinos havia caderneta e regulamento interno. As bagunças dos alunos eram traduzidas segundo os artigos do regulamento e anotadas na caderneta, para controle dos pais. (Isso poderia ser visto, também, como uma introdução à arte da delação) Sempre fui dos mais bagunceiros e minhas cadernetas tinham anotações quase todos os dias, principalmente sobre os artigos 14 e 21, que correspondiam a violação da disciplina na sala de aula e na fila. Do outro lado, minha mãe sempre pedia que tentasse não ter tanta observação - sim, creio que era como eles chamavam as anotações! - que fosse mais comportado, etc.
Pois bem, comecei aquele ano com o firme propósito de não ter nenhuma observação, e consegui, durante algum tempo. Lá estava a caderneta, branca, imaculada, como nova - virgem! Havia, é claro, o carimbo de compareceu mas, para mim, a virgindade só se romperia com a maldita tinta Parker, azul permanente, da caneta de algum inspetor. Não, dona Sabrina, falo de um colégio, de meninos, como o Clube do Bolinha, onde menina não entra, ou não entrava, sei lá, falo de um colégio e não, de um quartel! Mas quase digo caneta de um sargento pois, para mim, não só achava como proclamava ter uma caderneta virgem.
Chega o dia em que seu Décio, um dos inspetores, lasca uma observação na minha caderneta: "incurso no art. 21". Só isso: bagunça na forma, como eles chamavam a fila, que deveria caminhar em ordem e silêncio através dos longos corredores e da ponte, que unia o prédio ao morro, onde ficava o pátio de recreio - quase uma ordem-unida...
Minha reação foi como se o tal do seu Décio houvesse tirado a virgindade e a honra de uma filha minha. Eu espumava. Sabia que era apenas uma menino e ele, um homem, mas ao sair do colégio, o vejo numa daquelas intermináveis filas de ônibus. Noto que ele já está bem na frente com a maior parte da fila para trás. Lembro que era bom de corrida, se fosse preciso. Feitos os cálculos, passei por ele e disse algumas coisas sobre a pobre coitada da mãe dele que, por sinal, jamais conheci.
Para terminar o caso: ele não saiu da fila, como eu calculara, mas no dia seguinte, fui chamado à reitoria - o reitor, Dom Lourenço Prado, me comunicou que eu seria expulso. Infelizmente, depois, voltou atrás, por interferência de minha mãe...
O que queria dizer é que aquilo que é virgem - e qualquer novidade traz em si uma espécie de virgindade - está fadado a deixar de sê-lo. Essa reação de revolta pela perda da virgindade existe, mas é absurda e inútil. Às vezes, pode ser até perigosa, como no caso que contei. Ao contrário: o triste é ver algo morrer virgem, pois implica uma vida não vivida.
Voltaremos ao tema, quem não gosta de novidade?
Publicada em 02 de março de 1999
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