Aconteceu na África. Um jogador de futebol, indignado com uma decisão do árbitro, ameaçou-o, em pleno campo, com uma navalha. Até aí já poderia dar manchete numa página de esportes, mas tem mais. O juiz, que apitava o jogo e, portanto, corria pra baixo e pra cima pelo campo, como corre todo juiz de futebol, puxou um revólver que trazia escondido em meio à sumária roupa que veste um juiz, atirou e matou o jogador que o ameaçava! No meio do campo!
Aconteceu em São Paulo. Um professor universitário foi assassinado com três tiros, a três passos da porta de sua casa, pelo síndico do prédio. Ele reclamava muito da atuação do síndico e levantava suspeitas sobre a lisura com que o dinheiro do condomínio era administrado.
Aconteceu nas Alagoas... Bem, por aqui só se ouve falar dos casos mais importantes desse Estado peculiar, quando estão envolvidos presidentes da república ou deputados federais. No mais, fica-se a par de que esse modo de agir - tirar a vida de quem está incomodando - é corriqueiro por aquelas paragens de muito sol e água de coco.
Há milhares, milhões de outros exemplos. Todos os dias, em todos os noticiários, em toda parte do mundo. Mata-se o outro, com a mesma facilidade com que se tira o sapato que aperta no pé. Tiramos o sapato que incomoda e o jogamos a um canto. De um cadáver, em geral, é mais difícil de se livrar. O sapato fica lá, caído em seu canto e, mesmo que tenha chulé, fede menos com o passar do tempo. Cheiro de bicho morto atrai até os urubus.
Os exemplos, no entanto, mostram que nem mesmo o temor da prova maior do crime - o cadáver - intimida os assassinos. O árbitro atirou diante de milhares de espectadores, transformados em testemunhas. O síndico teve a emboscada e o crime gravados pelo circuito interno de tevê, que ele próprio mandara instalar no prédio.
Antigamente, as tramas de suspense costumavam começar com um cadáver. O morto prendia o leitor com a pergunta básica: quem é o assassino. Os bons escritores e roteiristas semeavam pistas falsas para fazer com que o leitor, ou espectador, perseguisse essa resposta até a última página, acreditando ser essa ou aquela personagem, ao sabor das falsas pistas.
Hoje, sabe-se quem é o assino até mesmo antes de saber quem é a vítima. Muitas vezes, o crime só vai parar nos noticiários por causa do pedigree do matador ou, como é costume no estados mais pobres, de quem mandou matar. Mata-se por um punhado de moedas. Judas só indicou aquele que deveria ser julgado e condenado. Note-se que no mundo mais rico, a violência é a mesma. Crianças e adolescentes matam seus colegas e professores a tiros.
A violência está aí e cresce. Todo mundo concorda que é preciso fazer alguma coisa. Todos dizem querer um mundo de paz. Ver crianças e velhinhas passeando de mãos dadas pelas ruas, sem correrem nenhum risco. Descrevem o mais antigo sonho do ser humano de um paraíso de delícias. Mas é preciso lembrar que somos nós que fazemos a sociedade...
Ela é a imagem ampliada do jeito de viver que escolhemos. Não lembramos que as velhinhas e crianças irão tropeçar em mendigos, agora promovidos a moradores de rua, numa espécie de título definitivo do status de miserável. Não nos lembramos que, ao parar no sinal de trânsito, fechamos as janelas do carro, para evitar o assédio dos pedintes. Não nos lembramos que nos parece normal lutar para engordar nossa conta no banco ou descobrir meios de evitar os impostos e, tudo isso, também é violência.
As leis contra a violência também são uma violência. Toda violência gera mais violência, há milênios se comprova. Se cada um cuidar da sua violência, a sociedade não será violenta.
Publicada em 01 de março de 1999
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