auto-retrato [1985] Crônica do dia

O cadáver

26/08/08

Imóvel, imponente e bem no meio do caminho, ela me obrigou a desvirar, ao ir pegar um copo d'água, no meio da madrugada. O ar seco sublinhava a sede. Ao voltar, reidratado, ela continuava lá, no mesmo lugar, no meio do corredor, inabalável como um objeto mas, ainda assim, cheia de vida. Não era uma aranha grande, talvez uns cinco centímetros, se tanto mas, ali, no meio do caminho começou a me parecer um estorvo...

Bati o pé no chão, forte. De um lado, do outro. Nada. Lembrei-me da piada da aranha surda... Bati o pé na frente, atrás. Nada. Poderia haver, ocorreu-me, razões biológicas para tal letargia: talvez estivesse em plena muda, com o 'novo animal' já no comando dentro de uma 'velha casca', do exoesqueleto prestes a ser abandonado, de onde sai o novo estágio, um animal maior, no complicado processo de crescimento dos artrópodes - insetos, aranhas, crustáceos etc. - nos quais a pele é também esqueleto...

Então, de madrugada, meio alerta meio a dormir, pisei o animal indefeso. Arriei sobre ele os quilos que ainda me restam, somados a pouca força de músculos velhos e esmaguei aquela vida, de uma ou duas gramas, talvez... Morta, a aranha se tornou uma coisinha de nada.

Quando ia tirar o cadáver dali, passagem etc., parei. Matá-la deixou uma sensação ruim. Decidi: que o cadáver ficasse! Bem no caminho, onde a toda hora cruzaria com ele. Que ficasse como reflexo de um lado oculto de nós, como emblema do assassino adormecido no mais fundo de mim...

Abandonado como monumento, patas dobradas, corpo minúsculo, um nada - monumento à inconsciência, ao desdenhar da vida, aos medos difusos, ao medo de morrer, monumento ao elefante alheio aos caracóis, ainda que sedosos caracóis de cabelos de mulher...


Nota: mato dípteros - moscas, mosquitos e mutucas - sem remorso ou compaixão e, é óbvio, indiretamente, quase tudo que como.

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