crônica do dia

O Marido

24/09/02

Na madrugada fria é mais difícil atender o telefone, tanto quanto impossível fazer ouvidos moucos ao chamado hostil do aparelho do senhor Bell, que já no nome ressoa:

- Alô?

- Você pode falar agora?

Ela abriu os olhos. Olhou as horas. Procurou ligar mais alguns circuitos, tirar o cérebro do sonho de vez e confirmar ser mesmo a voz do Lelé. Olhou mais uma vez para o mostrador com números luminosos como lâmpadas neon, e continuou sem compreender nada, muito menos porque o Lelé iria perguntar se ela poderia falar?

- Claro, por quê? - disse, temendo noticia ruim.

Ele continuou em tom de Hitchcock sertanejo:

- Seu marido não está?

- Mas você é um pilantra mesmo, hem? A Fatinha não está aí? Ela sabe que você está ligando? Pra quem você pensa que ligou, hem, hem, seu malandro...

O sonho acordado se desmanchava diante da realidade meio adormecida como névoa aos primeiros raios de sol. Depois de horas no teclado em exercícios de sexo virtual, numa sala de bate-papo, com alguém que imaginava lindíssima, mas só conhecia por fotos trocadas pelo fio do telefone que poderiam ser recentes, ou não, que poderiam ser dela, ou não, mas que certamente eram combustível a alimentar a imagem de deusa que todo homem traz em si e jamais conhece, depois de tanta conversa, tanta provocação, tantas insinuações e tanta malícia Lelé correu para o telefone e, ele supôs, ela, a misteriosa da internet também correria, para atender sem acordar o marido, e poderiam, assim, dispor de som e outros ingredientes no misterioso ato libidinoso que os envolvia e mexia com hormônios e neurônios e não sei que outras engrenagens dessa máquina efêmera e frágil, que só cada um pode sentir e usar ou abusar, até a morte. Pena: ele discou o número errado, ligou logo para ela, uma velha amiga do casal!

Quiçá o marido e a internauta tenham tido uma grande noite.

 

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