auto-retrato 

O nome do pai

06/01/09

A explicação, dada e repetida muitas vezes parecia inútil. Leocádio ouvia e insistia em sua teimosia:

- A filha é minha e vai se chamar Aleluia, vocês podem escrever o que quiser aí no papel, mas vai chamar Aleluia, inté por que sou o pai e sou eu e a mãe quem vai chamar e vamos chamar de Aleluia.

O escrivão, moldado talvez pelo ofício, permanecia inabalável, sem sinal de irritação ou manifestação de urgência. Pela aparência, podia esperar uns dezoito anos por uma solução consensual. Até lhe ocorreu que, em tal circunstância, a própria recém-nascida poderia fazer valer sua opinião, provavelmente contra o pai, ultrapassado aos olhos da jovem... E Afrânio, o escrivão, abandonava-se ao rolar de uma fértil imaginação e uma esferográfica sobre o tampo da mesa.

Uma senhora de vestido preto com pontinhos brancos, cuja aparência sugeria ser de fundação concomitante a do cartório, se levantou e resmungou sem se dirigir a ninguém, de modo a que todos ouvissem:

- Essas coisas só acontecem porque a esposa está de resguardo - homem precisa do cabresto da mulher...

Por coincidência ou provocação, ecoou neste momento a voz áspera de Leocádio:

- Aleluia! Vai ser Aleluia de todo jeito, a filha é minha e ponho o nome que quiser e quero Aleluia. Aleluia, vai se chamar.

- Mas isso não é nome de gente, ponderou ainda uma vez o escrivão, chame-a, por exemplo, de Alécia, Alécia pode...

Leocádio olhou o escriba de um olhar manso, mas cheio de decisão: vai ser Aleluia, pode escrever. Minha filha já chama Aleluia - Aleluia Rosa de Jesus, pode escrever. Ainda na barriga eu e a mãe já conversávamos com ela pelo nome: Aleluia.

Por que anotei tais fantasias há algum tempo, talvez ao descobrir se chamar Alegria a filha do Martinho da Vila? Seria o nome provocativo embrião do outro, Aleluia, filha de Leocádio? Não sei.

|volta| |home| |índice das crônicas| |mail|  |anteriorcarta957 carta959 carta 982

2454838.19344.943