auto-retrato [] Crônica do dia

Origens

19/10/07

Pretinha pára diante do balcão da padaria, envidraçado, iluminado e cheio de provocações. Aperta mais na mão as moedas contadas e, de pescoço espichado, pede ao moço lá no alto: seis, por favor. Nem precisava dizer do quê, pois todos ali faziam fila pelo pãozinho que acabara de sair. Logo, pé no chão, se foi a menina levando, no saco de papel, milênios de conquista e invenção, obra-prima antiqüíssima a exalar seduções pelo caminho além, de pão.

No princípio era o capim alto e suas sementes que, provavelmente, ao caírem no chão atraíam passarinhos e estes, caçadores. Talvez a mulher de um desses caçadores tenha se interessado pela comida que interessava tanto àquelas aves e se provou e gostou... Ah, que longa e demorada caminhada para a escolha do melhor capim e, literalmente, separar o joio do trigo e escolher os melhores grãos e aprender e aprimorar o plantar e... O trigo! Que caminhada!

O menino passou rápido como vulto, mal Pretinha pôs pé na esquina. Agiu de caso pensado, é óbvio, muito bem calculado, como águia ou gavião, que com bico ou garra rouba ao mar o peixe ou a outra ave, aos campos a lebre aos ares a outra ave no gesto rápido e preciso da garra. Agarrou firme o saco de pães e correu, desapareceu metido em algum beco ou desvão.

Longo e penoso aprendizado. Quantos reis e imperadores lançaram seus navios ao mar, seus exércitos às terras - ide, o reino tem fome de ouro, sede de pedras, o tesouro não pode abrir mão de vosso saque, matai, se preciso for! Quantas arcas e bezerros de ouro! Quantos cálices de platina e pedras e rubis a assinalar prostitutas e cardeais! Passo a passo, aprendemos a domar o vento para multiplicar o pão. Passo a passo, aprendemos manhas de rapina e dissimulação.

desenho do autor

Num canto da rua a menina chora, sem pão, sem tostão.

|home| |índice das crônicas| |mail| |anteriorcarta708

2454393.18272.823