Ainda uma vez a noite se dilui em luminosidade e outro dia se inaugura no oriente. O sol tarda a banhar esta encosta oriental e, quando o faz, vem oblíquo e baço como um dia com preguiça de acordar, como se puxasse sobre si a beira do manto outonal. Os pássaros vão a seus afazeres sem trânsito nem buzinas. Gorjeiam, batem asas, planam, cantam os limites do mundo para si. Acham insetos, minhocas, grãos e frutas para o café-da-manhã. E cada ser se assanha com o milagre de um novo dia com o transbordamento de energia que o sono lhes restaurou. Um após outro os carros sobem a ladeira com os humores do motorista transcritos na voz do motor, na pressa dos pneus sobre o chão de terra, na fumaça matinal de alguns escapamentos, num ou noutro limpador que tenta livrar o pára-brisa do pó acumulado. Breve, se perderão nas filas imensas a desafiar paciências. Acostumamo-nos com o milagre e contamos com ele dia após dia. Aqui, o cão transborda alegria a cada manhã. Parece não se conter e é visível o quanto se controla para não pular com as patas dianteiras sobre meu peito. Rodopia numa dança canina. Depois, ao longo do dia, seu humor murcha gradualmente. Carregamos de um dia para o outro nossos problemas. Antes de nos regozijarmos com o dia que nos desperta, antes do espanto de tanta luz, nosso saber, nossa agenda, pendências e compromissos, o ontem desaba sobre nós. Venda nossos olhos ao milagre da manhã. Ao milagre de um corpo restaurado do uso e abuso de cada jornada. Milagre a clarear nossa visão e permitir discernir o que antes mal se podia divisar. A estrela, nosso sol, continua lá, com seus enigmas e tumultos a desafiar a humana compreensão. Apenas nós, antes voltados para fora da órbita, para a noite cheia de estrelas, no giro do planeta voltamos a ficar face a face com a luz. |
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