autor [1962] crônica do dia

Penúltimo

30/12/13

A paisagem se agita mansamente. Cada folha só para por um instante e logo leve brisa ou mesmo vento a faz oscilar como sutil aceno. Entre tantas nuvens, também o sol faz aparições raras e momentâneas. Ouve-se um único piado, monótono, e o som irritante do caminhão de gás. Dir-se-ia reinar um sossego cheio de apreensões, talvez pela iminência de chuva, talvez pela certeza de um fim, ainda que final meramente convencional.

Sim, o fim do ano poderia ser em qualquer outro dia, o calendário deriva de alguns aspectos astronômicos e numa série de convenções. A partir de 1582, um número crescente de povos adota o calendário gregoriano e, por ele, o ano acaba amanhã. Aqui, com um leve suspense climático, sublinhado por constante clarear e escurecer do dia. Tem-se, assim, um fim e um começo do que não acaba nem principia. A sequência dos dias continua incólume, ainda que se recomece a contagem de novo ciclo em torno de nossa estrela.

Com a mesma arbitrariedade com que se elege um ponto qualquer de um círculo para ser seu início e fim, se escolheu o dia de amanhã para congraçamentos e celebrações, para grande algazarra e ensurdecedor estardalhaço à guisa de comemoração. O sol encontrou uma brecha mais ampla e azul e traz consigo novos pios, ainda que o vento insista em movimentar a paisagem quase a ponto de estontear. O ronco de um avião ecoa longe a evocar trovoadas. Também distante, um alarme disparado se repete inutilmente.

Se não há mais tempo para fazer neste ano, existe um ano intacto pela frente a renovar esperanças, decrescentes até o final de 2014, dando a tudo novo brilho de possibilidades. As formigas continuam a carregar pedaços de folhas para seus formigueiros, alheias aos ritos e significados das coisas das gentes. Ainda restam algumas horas deste 2013, aproveitemos pois.

30/12/2013, at 14:38

Belíssima crônica, Clode.
Aproveitando que não há fim e nem início, desejo-lhe boas colheitas na continuidade.
Elisa

Belo voto, Elisa.
Obrigado.
Que bons frutos você também possa colher.


30/12/2013, at 14:44

"As formigas continuam a carregar pedaços de folhas para seus formigueiros, alheias aos ritos e significados das coisas das gentes", resume com perfeição minha sensação sobre toda essa "agitação gregoriana". Entendo a necessidade humana de ritualizar a realidade como uma defesa contra o nada que se avizinha. Descrente, entendo que a evolução privilegia a crença como elemento aglutinador e organizador do social e amparo psicológico no indivíduo. Se pudesse, acreditaria numa transcendência qualquer. Deve fazer muito bem a mente...

Grande abraço.

Ebert

Não sei... acredito que a verdade seja mais capaz de fazer bem. Os ritos sempre foram um desafio à (minha) compreensão. Nos tempos da enfoco, a Maureen louvava os ritos e eu a ouvia com suspeição... Sublinhe-se, aqui, seu "se eu pudesse" - ele diz tudo.

Abraço


30/12/2013, at 19:02

Ei, Maninho

Sabe q tenho uma certa implicância com esse recomeço ou...

pretenso recomeço... Mas esse lento roda roda que se escorre faz milhões de anos... dio mio: o que mesmo que tem de novo nisso?

roda pião, bambeia pião roda pião, bambeia pião...

igualzinho, né? só que ninguém presta atenção no pião, completando o seu giro...

no no no... o recomeço que recomeça...

já tou ficando tonto. e pronto.

mas - de verdade - não sou do ramo das ciências exatas.

nem sei ler o céu. bom fim de tarde ai.

bjo

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Bela cônica (ou poesia) o seu comentário!

Obrigado.

Parece-me que o ser humano se prende ao rito e ao pretexto. Rito, como eventual cimento de nossas difíceis relações e pretexto para outra bacanal. A vida continua, o calendário também, alheios ao comportamento desse bicho tão esquisito.

bj, c.


31/12/2013, at 17:00

gostei mesmo das formigas alheias aos ritos
e tantos outros bichos por aki tbm

tudo de bom

como dizia o papai
saúde, saúde, saúde, o resto vem depois

mts bjs

Maren

Merci.

Algo sucedeu hoje com as formigas: de repente, a correição sumiu e deixou, por onde passava, mutíssimos pedaços de folhas que, provavelmente, antes carregavam.

Faz calor, mas sopra um vento firme, como de um bom ventilador.


06/01/2014, at 12:21

nossa, que lindo! Pena que só li hoje, pois não tive tempo no dia 30 (nem 31) - confirmando, aliás, oque vc diz aqui: 'Se não há mais tempo para fazer neste ano, existe um ano intacto pela frente'

Você me falou disso há milênios e, desta feita, expressou-se MUITO MELHOR, de forma mais bonita! Como vc escreve bem, Clode!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

      sem assinatura

Inauguraste muito bem o ano, então, intacto!


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