aquarela do autor

(de esporadicidade imprevisível)

Peruqueiros

30/08/18

O Homo verbalis relegou a compreensão a um plano de fundo. Apega-se com obstinação às palavras e por elas se bate e debate sem procurar compreender o implícito além delas, os fatos acolá do discurso. O importante ultrapassa o discurso e pode, até, ser eclipsado pela eloquência, pelo brilho da retórica, pela erudição e rebuscamento.

Compreender requer uma postura diferente daquela do debatedor, da do especialista, da do profissional adestrado. Estes frequentemente rotulam com desdém a opinião de quem se dedica a um assunto por entusiasmo ou paixão e os dizem "amadores", desatentos ao significado mesmo de amador.

O dicionário corrobora ao definir amador: "que ou o que ama" e, adiante, esmiúça: "que ou quem se dedica a uma arte ou um ofício por gosto ou curiosidade, não por profissão". Enquanto nos ativermos às palavras, aos discursos repletos de citações altissonantes a transbordar erudição e repetir a visão e o sentir de outros em detrimento da própria percepção, dificilmente poderemos nos dedicar a escutar e tentar compreender além do verbal.

Afora as "realidades virtuais" produzidas por inúmeras tecnologias, existem realidades virtuais criadas pelo texto, escrito ou falado. A linguagem e seu uso distinguiu o homem de todos os outros animais e, ao mesmo tempo, estabeleceu múltiplos universos na mente humana, ameaçando o discernimento de crença, imaginação, devaneio ou fato.

Em "A Arte de Escrever"*, Schopenhauer ironiza ao dizer que "a peruca é o símbolo mais apropriado para o erudito puro. Trata-se de homens que adornam a cabeça com uma rica massa de cabelo alheio porque carecem de cabelos próprios."

Aproxima-se uma ocasião na qual usar a própria cabeça terá consequências coletivas e me espanta o empenho e perseverança de muitos a se oferecerem como peruca para a cabeça do eleitor.


* A arte de escrever/Arthur Schopenhauer; tradução, organização,
prefácio e notas de Pedro Süssekind - Porto Alegre: L&PM, 2011. volta

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