desenho de Mima

Pio pungente

14/12/11

A tristeza da passarinha ecoa em um pio grave e brando. Desde ontem ela - cisma minha, ser fêmea - circula em torno deste quintal com seu piar repetido, que me parece lamentação: uma única nota, um tanto grave, ora mais forte, ora em surdina.

Em minha imaginação, ela perdeu o filhote e, inconsolável, chama por ele com insistência maternal. Procurei em vão algum filhote no chão. Já vi muitos caírem do ninho ainda incapazes de voar. Em duas ocasiões os tentei salvar - um bem-te-vi e um sabiá-laranjeira - mas acabaram morrendo sem os cuidados maternais.

É uma ave que não conheço, com dorso, asas, cabeça e rabo cinzento escuro, quase preto e, da garganta ao rabo, por baixo, de cinzento bem claro . O rabo é comprido, menos que o da andorinha e mais que o do sabiá. Seu bico tem uma cor quase alaranjada.

O pássaro pousa em um galho e pia seu piar monótono, continuado, com sua nota a se repetir mais ou menos a cada dois segundos. Olha para um lado, olha para o outro e voa para o galho seguinte. Sobre um galho grande e quase horizontal, foi aos saltos de uma ponta a outra, sempre a piar.

Outros perigos põem em risco filhotes de passarinho por aqui. Saguis roubam e comem ovos e filhotes recém-nascidos; estes aguçam também o apetite de gaviões; gatos, cuja cobiça por pássaros é conspícua, nunca os vi ter sucesso em caçadas por aqui, mas alhures, sim.

É possível não ser nada disso e a agonia da passarinha não passar de imaginação. Afinal, é uma ave desconhecida cujos hábitos ignoro, mas dois dias sem se afastar deste quintal tornou sua voz, para mim, lamento pungente, que apaga o humano vozerio, o ronco de guerra de helicópteros, os latidos em coro da cachorrada ou o lento afastar-se de turbinas a jato - fica, apenas, o piar grave e brando.

Não sei o que vai no coração da passarinha.

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