Sou um eremita. Já contei? Defeito genético, talvez
- ninguém vira um ermitão assim, da noite pro dia,
a troco de nada. A pessoa já nasce eremita. Olha ao redor,
vê outras pessoas e abre o berreiro. O médico diz
que é para encher de ar os pulmões. Que nada, é
pura saudade da solidão do útero.
Com o correr dos anos essa solidão primordial se aplaca,
para que se cumpra a recomendação divina inicial.
Crescemos e nos multiplicamos sem jamais questionar as aptidões
matemáticas de Deus. Neste afã, chegamos a parecer
por um certo tempo, seres sociais, como os cupins, as formigas
e algumas vespas.
Digo isso porque tornei-me dependente crônico da palavra.
São as únicas visitas que recebo. Muito raramente,
vêm vestidas de sons, no mais das vezes, como que para não
deixar qualquer dúvida sobre nossa primazia visual, chegam
como sinais iguais a estes, que nos unem aqui - eu e você,
minha querida leitora solitária. Sim, dona Sabrina, hoje
eu resolvi fazer a crônica em latim. Já disse até
dependente crônico da palavra, não é mole, puro latim.
Fica na sua e espera o ite missa est. Dependente crônico,
pois tem sido a palavra escrita que me diferencia ainda da jabuticabeira
ou do tronco morto e seus cogumelo-orelhas, incapazes de escutar.
Pois, sons, há.
O vento murmura nas folhas Algumas aves trocam mensagens, avisam
que vão dormir, que acabam de despertar. Existem borboletas
capazes de estalar. E o relógio velho regula os quartos
de hora de que já não dispomos mais. Chama-se Reguladora,
fabricado em Portugal. Sim, há grilos, os de dentro e os de
fora. Os grilos da noite e os do dia. Meros grilos, que grilam,
como só os grilos sabem gritar. De muito em muito, passa
um aviãozinho. Não se fala. Não há
palavras no ar.
A síntese era furiosa nas palavras derramadas pelo correio
eletrônico: "Queria imprimir uma camiseta com os
dizeres: DEIXEM OS PAPARAZZI EM PAZ! Os únicos urubus que
se dizem urubus. Os outros atendem pelo nome de pombinhas da paz.
Que saco! A morte é sempre tão triste."
Falavam da morte de uma princesa de contos de fada num conto de
bruxos. Não vi nada na televisão. Ouvi apenas a
voz emocionada do repórter, direto de Paris. Depois, veio
nota da pomba mor: "O papa João Paulo II enviou
nesta segunda-feira à rainha Elizabeth 2ª da Grã-Bretanha
suas 'profundas' condolências pela morte de Diana, a princesa
de Gales." As pequenas aspas, de profundas, vieram com
a nota da Associated Press, não sei se postas ali pelo
tradutor...
O papa João Paulo II não enviou, nesta segunda-feira,
à nenhuma das mães que viram seus filhos morrerem
de fome, suas condolências, 'profundas' ou não. O
meu amigo não deve ter impresso camiseta nenhuma, com dizer
algum. Os jornais de hoje têm outra "vítima".
Talvez alguém queira fazer camisetas com frases contra
o álcool ou em defesa dos motoristas. Ninguém vai
querer saber porque se fabricam carros tão velozes nem
por quê, no Brasil, morreram outras cento e trinta pessoas
nessa segunda-feira, como morrem todos os dias, vítimas
de automóveis, caminhões e parecidos.
Não sei da vida da princesa. Quase tudo que sei é
que era uma princesa e, pelo que diz o Vaticano, de Gales. Tampouco
sei exatamente o quê, ou onde, seja isso. E aí é
que está: pouco importa, para todos nós, a morte
de uma pessoa. A comoção que, provavelmente, quer
o escalpo dos paparazzi é toda em torno de uma morte simbólica.
Por um momento tomamos consciência de que morreu a Princesa.
Ponto. Aquela que as meninas sonharam ser um dia. Aquela que os
meninos sonharam amar um dia. E com a morte da Princesa tomamos
consciência, por alguns instantes, que o sonho morreu. A
pureza daquela criança que amou a Princesa, que sonhou
ser princesa, morreu também.
A agência de notícias informa que "o Santo Padre elevou suas preces encomendando-a ao amor eterno de nosso Pai celestial". Não diz se o padre santo voltou seus olhos para as milhões de crianças que, em breve, verão morrer seu sonho de Princesa...
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