Eis a essência do catolicismo - o purgatório. Poderia ser o muro, lugar daqueles que não estão nem de um lado nem de outro; nem no céu nem no inferno. Abrigo para os que deveriam estar no inferno mas... "graças" à benevolência, à clemência do "novo" Deus dos católicos (pois o antigo, que era dos judeus, do velho testamento, é inclemente, vingativo, cruel, implacável) graças a este novo perfil, muitos dos que conquistaram o inferno, pela conduta de toda uma vida, adquirem o status de semicondenados, empatados com as crianças que morrem com poucos dias ou horas de vida e passam a esperar o juízo final - uma espécie de copa do mundo da avaliação das condutas.
Não sei se há outra religião com uma criatividade similar. Essa espécie de armadilha para não precisar proferir a sentença definitiva, que poderia levar o "fiel" a optar por outra crença, onde não fosse um condenado sem perder o poder contido na ameaça da condenação eterna.
Poderiam me dizer que a essência está na idéia de eternidade e, não, na do purgatório. Sobre essa, a eternidade católica, Borges esgotou o que se poderia dizer em sua insuperável "História da Eternidade". O purgatório, por outro lado é, como símbolo a essência da diplomacia, da política, da justiça humana e masculina, do que não é preto nem branco, do chove não molha.
Os tempos atuais lembram o purgatório. Depois da explosão dos meados deste século - céu e inferno, conforme o ponto de vista - mas, fértil como o lendário vale do Nilo sob todos os aspectos, vive-se agora o tempo morno da esterilidade das releituras, dos revivals, reedições, retudo, diante da inexistência de qualquer coisa autêntica desses tempos. É o purgatório do século, ou do milênio, sei lá.
Um tempo de advogados, de políticos, de economistas, de marqueteiros, de estatísticos e outros especialistas similares, escondidos por trás de eufemismos pomposos, mas um tempo vazio de mulheres e homens com fome e sede de criar. De buscar o novo, sem medo do inferno e de seus demônios, sem medo do céu.
Aos poucos, nos vemos todos no purgatório, semicondenados, mas com a possibilidade de uma salvação futura, no "dia do juízo". Assim, não é preciso fazer nada já, hoje, neste segundo. Assim, se pode ficar entretido com os replays, à espera do "bom Deus"...
Publicada 15/06/99
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