Que pena
02/12/11
Que pena Pero Vaz de Caminha, cujo sobrenome me evoca uma cama pequena ou o percorrer de um caminho, que pena, repito, empunharia a bordo da caravela o escriba d'El-Rei, para contar com graça e sagacidade das vergonhas exibidas pelas moçoilas encontradas por aqui, certamente na companhia de seus moços, pois assim não fosse, como poderiam se multiplicar, e ele, Pero, incumbido do relatório real e oficial, sublinhou em minúcias tais vergonhas, que em nada envergonhavam a quem as possuíam "tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam" e, adiante, as compara com as das portuguesas: "... e certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha!) tão graciosa que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições envergonhara, por não terem as suas como ela." Mas não se deteve o autor da carta a El Rei D. Manuel nas igualmente descobertas e glabras vergonhas dos moços, em número muito maior do que elas, vergonhas certamente mais conspícuas e agitadas, que pena, dizia, empunharia Pero Vaz em tal relato? Poderia ser pena de pato, de ganso ou, até, de urubu, pois as penas coloridas, vermelhas, verdes, amarelas e azuis decoravam, então, os habitantes da terra que batizou. E a pena, sem pena do escritor, com sua ponta cortada em bisel, deitava lentamente no papel o líquido sorvido do tinteiro no oco de sua raque, em texto liquefeito em lúbrica caligrafia, prestes a um terrível borrão, bastando à mão um escorregão. Que pena, Pero Vaz, só muitíssimo depois se inventou impressora a jato de tinta ou esses tabletes onde se escreve com o roçar dos dedos. Que pena usaria Caminha a caminho de um porto seguro? Como ele, encerro: "Deste Porto Seguro, hoje, sexta-feira," bem, a data mudou. |
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