De repente, me parece estarmos todos no imenso útero do tempo a participar, de algum modo, da gestação de uma nova humanidade ou outra sociedade humana, fruto de nova urdidura. Nem pessimismo nem otimismo. Aliás, esperar ou almejar o melhor ou o pior não altera os planos do acaso, não muda os fatos. Do útero é quase impossível compreender a gravidez. Meu neto me parece mais preparado do que eu quando tinha sua idade, deve ser apto a fazer um mundo melhor, mas o demônio me sussurra do outro lado: é mais preparado para suportar um mundo pior. Recebo, ao mesmo tempo, de dois remetentes distintos, e-mail com fotos das embalagens de vários remédios, de cem anos atrás ou mais, cuja fórmula incluía a cocaína. O que é melhor: a proibição de hoje ou os frascos nas prateleiras das farmácias de então?
Ainda menino soube da decisão do professor Bahiana, de Química, do Curso Kubrusly, de substituir seu insólito lanche de cada dia, uma Coca-Cola, apenas, por guaraná. Motivo: haveria cocaína na fórmula da bebida que já a trazia no nome. Assim se fez e, de quebra, o refrigerante sumiu de nossa casa também. No início dos anos cinqüenta cocaína era algo misterioso, pouco conhecido, imponderável como um anjo. A perspectiva da idade sugere que o simples se complicou. A vaidade contaminou a toda gente e a imensa vitrine de desejos resplandeceu iluminada por novas luzes. O egoísmo desafiou a sensatez enquanto outras belezas apagavam bonitezas de antanho, mas a feiúra de hipocrisias d'outrora desmoronavam ante o culto de uma sinceridade cheia de grosseria e indelicadeza. Os homens estão por trás de tudo - sem eles não há leis, utopias nem salvações. E se estivermos todos imersos no útero do tempo a perceber mais célere o escorrer da areia pelo gargalo da ampulheta? Impossível decifrar. |