Pediu um café e palitos. O garçom
já se afastava, quando completou: - ah... e embrulha esse
resto pra viagem. O garçom, que mal tinha virado a cabeça,
para ouvir o resto do pedido, parou. Voltou à mesa, olhou
demoradamente o prato que deveria levar para embrulhar: dois dedos
de bife e colher e meia de legumes no azeite e alho... Tem toda
razão, dona Sabrina, como letrinhas, também prefiro
alho e óleo, soa melhor, mas apenas ao paladar auditivo...
claro, querida, não só como, como cuspo letrinhas.
Que tal uma sopa de letras?
Depois da contemplação dos
restos, Severino olhou para O freguês e arriscou: - tem
certeza que vale à pena? Veio meu café, acendi um
cigarro e arrisquei um chute com meus botões - pelas aparências
o salário do cara deveria ser pelo menos umas 20 vezes
o do garçom. Ele queria as sobras. O garçom achava
que não compensava. Pedi outro café, esperei o outro
tomar o seu, pagar e ir, com o embrulhinho na mão. Chamei
o garçom: - O que é feito da comida que sobra? Não
titubeou, disse com uma ponta de orgulho: - vai pro lixo, direto
pro lixo. E justificou: - aqui, não se reaproveita nada!
Ouvi que os restaurantes dos Estados Unidos
jogam fora uma quantidade de comida capaz de alimentar 80 milhões
de pessoas. Coisa de americano, tudo calculado na ponta do mouse.
Passou na televisão. O repórter explicava que o
problema era, em última análise, o que, para minha
avó sempre foi ter o olho maior do que a barriga. Donos
de lanchonetes explicavam que o tamanho do sanduíche é
que atrai a freguesia . As imagens mostravam pilhas de pão
e recheios impossíveis de morder. Mostravam pessoas, ensaiando
a dentada. Oitenta milhões, apenas com as migalhas da mesa
americana! Na certa, aqui, nunca fizeram as contas. Aqui, há
cinqüenta anos, um poeta maior contou do bicho que viu catando
comida no lixo: "O bicho não era um cão,/ não
era um gato./ não era um rato./ O bicho, meu Deus, era
um homem." Ah, Bandeira, não poderias imaginar 1997...
Eu e os outros. Espero que você, leitor,
esteja esbravejando: - e você, cronista, o que faz? Pouco
importam palavras escolhidas, letrinhas empetecadas. A comida
de seu prato, os restos do seu jantar, hem, hem? Sim, porque já
saiu até na televisão! Apontar os vícios
da humanidade, é o que mais se faz. A julgar pelo que se
ouve, vivemos no paraíso: o mal do brasileiro é
esse e aquele... o que estraga o ser humano é isso e aquilo...
é urgente se fazer tal coisa... as autoridades deveriam...
o governo não vê... Eu e os outros. Afinal, não
preciso me incluir, que diferença faria, de um ponto de
vista meramente estatístico? Para mim, quero do bom e do
melhor. Não é para isso que me mato, como um idiota,
todo santo dia, de casa para o trabalho, do trabalho para casa?
Eu, e os outros.
Eu sou a humanidade. Você é
a humanidade. Meu vizinho é a humanidade, o seu, também.
A princesa que morreu é a humanidade. O bicho que Manuel
Bandeira viu, é a humanidade, o poeta, também. Suponha
que uma célula qualquer de seu corpo se decida cansada
de cumprir seu papel - digamos, de produzir um hormônio
qualquer. Ela raciocina: o corpo tem mais de um trilhão
de células, portanto, tanto faz como tanto fez... imagine,
agora, que outras células, ali por perto, vendo a boa vida
da companheira, resolvam imitá-la... Não sei quantas
células tem um corpo humano, quantas a humanidade.
Mas é certo que esse grande corpo de que somos células,
dá visíveis sinais de múltiplas doenças.
Os pais, japoneses conheciam a fome. Os filhos,
nascidos no Brasil, não. Como são as marcas e cicatrizes
dos pais, que moldam a educação dos filhos, naquela
casa, cada refeição terminava com um verdadeiro
resgate de grãos. Não era permitido sobrar no prato,
sequer um único grão de arroz. E foi fácil
convencer as crianças: quando sobrava, um grãozinho,
um só que fosse, o mesmo prato voltava, do mesmo jeito,
para a próxima refeição. Claro, era guardado
na geladeira ...
Quem quer comida reciclada?
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