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Sarjeta

31/01/00

 

O sujeito está caído na sarjeta, atropelado. Tenta um movimento, mas tudo que consegue é um gemido. Você se aproxima e, sem um gesto de solidariedade ou uma palavra de conforto, examina bolsos da vítima, recolhe moedas e outros objetos e some rápido, alheio aos gemidos e súplicas por socorro.

A cena existe, talvez seja de Nelson Rodrigues - não importa. Repito a imagem por me voltar, sempre, trazida pelas notícias da economia global. A história se repete e as previsões se confirmam. A estrutura está construída de tal forma que o fluxo normal de dinheiro continuará a sugar o pobre e inchar o rico. Não importa se pessoas, firmas ou nações. Em todos os níveis o fenômeno é o mesmo e o moribundo indefeso é assaltado na cara-de-pau.

A França anuncia redução nos impostos. Em seguida, dos Estados Unidos vem aviso semelhante. A máquina está azeitada, o dinheiro flui na direção prevista; talvez o fluxo supere o que se podia prever. A grana sangra do que tem pouco para aquele que ignora o ter ou não ter. Um punhado de ricos tem mais do que várias nações pobres, juntas. Dispensam-se detalhes numéricos. Outrora, questionou-se a lisura do cobrar juros. A usura foi posta sob suspeita: não seria covardia, já que o outro está ferido, atropelado, na sarjeta? Muito de seiva entre nações é feita de juros e outras sutilezas contábeis. A teia é vasta e os capilares se multiplicam.

A nobreza de caráter, a honestidade, a hombridade, a dignidade, a ética, a moral - tudo isso, parece relegado ao monturo. Virou papo-furado, coisa de antanho, como esta palavra a recender naftalina. Hoje importa o lucro, o ganho, o lucro, a oportunidade comercial, o lucro, a vantagem pecuniária, o lucro, a... A ganância de lucro cega. Justifica o correto e o quase... e o quase-quase e...

 

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