'Meu primeiro desenho' by  Anucha [1991]

Segunda

08/09/08

Segunda-feira com cara de segunda-feira. O tempo seco, quase de deserto, cedeu ao desfile de nuvens, de noroeste a sudeste, sobre a megalópole envolta em eterno manto de poluição. Um ventinho maroto impõe acenos à vegetação sob o branco luminoso de uma abóbada onde ecoam aviões.

O domingo, encoberto, deixava na malha de nuvens buracos azuis. De vez em quando, o sol vazava por uma dessas aberturas e inundava de alegria a paisagem banal deste canto, a transbordar vida por cada poro. Depois, à sombra das nuvens, pairava um quê de resignação... À noite, entre os buracos de nuvens copas de árvores, exata meia Lua pareceu-me oblíqua no céu.

Hoje, a segunda-feira se faz sob luz do grande difusor estendido de horizonte a horizonte. De repente um pio forte, num crescendo, não me pareceu miado. Ele só me ocorreu ao ver a ave, deslizar entre galhos finos, no alto do liquidâmbar, e parar num e noutro para repetir seu canto forte, penetrante, agudo. A mim, não evocou um gato. A alma-de-gato insiste com uma única nota, repetida a intervalos de cerca de um segundo, primeiro, cada vez mais forte, mais intensa para, em seguida, ir diminuindo até uma parada súbita. Pareceu-me ser preciso certa imaginação para ligar aquele som ao miar de um gato, qualquer um dos que conheci.

O ar cheio de umidade e as lufadas ocasionais acentuam a sensação de frio na estréia da penúltima semana de inverno. A vida, com suas rajadas, seus dias nublados e algumas tormentas, também é pontilhada, como o domingo, por luminosos buracos de uma pureza interior inesperada, uma sensação inexplicável, quiçá, a tal da felicidade.

Que sejam as primaveras da vida viçosas como a que já frutifica e floresce entre sanhaços a namorar amoras, neste refúgio livre de neves, salvo, e óbvio, as que a velhice obriga aos pêlos.

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