Hoje não vai ter crônica. Segue o relógio seu ciclo analógico, segundo tique, segundo taque, escorre o ponteiro na rosa dos tempos a traçar senóides que só matemáticos vêem, enquanto bilhões de pés esquerdos ultrapassam os pés ao lado, direitos e, no instante seguinte, são por estes superados passo a passo no ir, para quem olha de lá, no vir, para os que estão aqui.
Vez por outra uma pedra no caminho de um pé atrapalha o passo e alguém perde o compasso ou um grão de areia foragido da ampulheta quebra um dente de engrenagem e modifica a senóide e um relógio perde tempo...
Há dias não vem o padeiro. A única notícia é o pão que não chega a cada manhã. No supermercado da esquina não faltam pães, mas o padeiro das onze horas, que traz um pão que todos chamam de 'italiano', há uns cinco dias sumiu. A notícia que se procura é se hoje tem pão, ou ainda não...
O pior: pão não é item esporádico como certas publicações. Fome dá todo dia, com chuva ou sol, calor e, com frio de matar, fica ainda maior.
A crônica também sumiu. Um dia antes que o padeiro do pão italiano. À falta do pão veio a lembrança de que alguém poderia contar com esta crônica a cada dia, esperá-la com pãezinhos, geléias e manteiga prontos, para o chá da tarde mas, que fazer...
Olho à roda e nada se faz crônica. O dia límpido e de luz tímida, pela manhã, se anuviou e o frio calou fundo. A roda-gigante, a que Ginsberg clamou 'estar encostando' seu "delicado ombro"', gira como no final da década de cinqüenta. Continuamos a fabricar bebês, aos milhões, todo dia, toda noite, como no princípio e o lobo do homem continua o mesmo. Olhe e diga o que vale uma crônica.
Louvar o sentimentalismo como a lágrima cavada, como reportagem de tevê? Clamar ao 'bom-mocismo' em troca de promessas aqui ou no além (e onde ou quando, 'além'?)?
Não, hoje não vai ter crônica.
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