- Quer dizer que escreve?
- Sim senhor.
- Faz textos...
- Sim senhor.
- Qualquer escrita, o que se pedir o senhor escreve, sobre qualquer coisa?
- Isso não senhor.
- Então há uma autocensura! - Anselmo cofiou um cavanhaque imaginário - Posso saber por quê? Razões pessoais, motivos religiosos, promessa...
- Não, senhor, não é nada disso...
- Então, por quê?
- Não consigo, senhor. Apenas por que, para mim...
- Não consegue!? Afinal, o quê você não consegue escrever?
- Ficção, senhor. Ficção não faço não.
- Mas... por quê?
- Porque não acredito.
- Ah! Acha o gênero superado, sem futuro? - de novo o cavanhaque inexistente. Por que não acredita em ficção?
- Não, senhor, eu não acredito é no que escrevo. A mim parece impossível escrever quando não se crê no que sai da pena. Vê, acredito na pena, malgrado há um século ou mais já a tenham posto de lado com os rebuscados tinteiros e o utilíssimo e divertido mata-borrão. Para esta minha fé, porém, continua aí, ainda que metáfora, mas não consigo acreditar nos idiotas a dialogar como se fossem outrem, em busca de algum vestígio de personalidade, de qualquer traço humano para travestir uma personagem.
Depressa os mato aqui mesmo. Para pôr logo tudo às claras. Não há 'senhor' algum, nem Anselmo, apenas este aprendiz.
Das muitas formas de mentir que alinhavam uma vida, esta me foi vedada - sou avesso ao fingir da ficção. O mimetismo do fato me arrepia como, para outros, o escorregão do giz no quadro-negro ou raspar da unha em tafetá.
Mais envelheço e menos gosto da ficção que leva atores à faina de iludir a câmera, personagens a simulacros de peripécias e estripulias de alcova etc. Clamo, então, pelo maestro capaz de me conduzir pela mão à sua obra, mansamente, sem estardalhaço, metralhadoras apoplécticas, explosões apocalípticas ou malabarismos de verossimilhança. Não é, senhor?
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