Sobrenatural

06/08/12

No ano da Graça e da Glória e de muitas outras de 1960, mais ou menos - toda memória encerra um tanto de invencionice diretamente proporcional ao tempo decorrido - naquele ano terminal da década de cinquenta, fui rebaixado para os memoráveis porões do 674 da rua Sorocaba, onde passei a morar entre paredes improvisadas com papel kraft e ornamentadas por recortes em forma de ogiva cobertos por papel vegetal decorado com hipotéticos vitrais pintados com os, então, novíssimos 'pincéis atômicos'.

Naquela gruta, deitava-me com a preguiça dos descompromissados e acendia uma vela metida no gargalo de um garrafão de vinho, de cinco litros, e a luz indecisa da vela tornava ainda mais acolhedora a escuridão natural do porão acentuada pela divisória improvisada. Às vezes, punha alguma música em uma vitrolinha portátil ou simplesmente me perdia em devaneios ou forçava a respiração, para provocar mudanças de estado decorrentes da superoxigenação.

A sexta década se anunciava e logo estaria me perguntando o que diabo significaria, afinal, ié-ié-ié. Ninguém poderia supor, então, 1964 e consequente abominação. Numa dessas tardes vadias, talvez ao som de uma sinfonia, acompanhava, sem levantar a cabeça do travesseiro, uma vela se extinguir inexoravelmente na boca do garrafão. Comecei, então, a estimular na mente a analogia daquele fim com a morte de um ser vivo. O espetáculo se sofisticava conforme descia pelo gargalo, uma vez que, confinada, a chama dispunha de menos oxigênio para queimar. Surpreendentemente, a cena se prolongou por um bom tempo. Ela, chama e símbolo, diminuía até quase se apagar e reacendia com a retomada de oxigênio. Por fim, a vela caiu dentro do garrafão verde e, ao bater no fundo, reacendeu.

Ah, como é fácil hipostasiar o sobrenatural e ver significados além dos fatos!

6 de agosto de 2012 09:48

ADOREI!!!!! parabéns!!!!

Renato Imbroisi

Que bom e obrigado. Fico contente. A sua não é uma opinião qualquer.


6 de agosto de 2012 19:14

Hipostasiastes a Graça e a Glória, aprendiz?
cod34

Vê, é fácil criar fantasmas...


6 de agosto de 2012 19:41

nossa Clode
que bonito
não lembro dessas ogivas com papel vegetal pintado com pincél atômico...

bjs Maren

Já houve uma foto. Se achá-la, mando.


7 de agosto de 2012 14:31

Então:
é fácil crer no improvável.
pode ser numa religião, no acaso, no horóscopo numa bruxa, em coincidências, destino, sina, ou o que você quiser.
Talvez o grande mistério da vida nos impulsione a buscar significados, justificativas, razões, motivos ou, tudo aquilo que não é factual pode se tornar coisa sem sê-la. assim como considero todas as religiões pura ficção, lendo sua crônica acabei de perceber que tudo que está na nossa memória é ficção afinal de contas tudo a ser armazenado é interpretado na nossa mente.
o passado é ficção. a única coisa real que temos é o presente e nem vou falar de futuro por motivos óbvios.
Depois de perceber isso chego a acreditar que talvez seja um milagre mesmo as pessoas conseguirem conviver juntas pensando ser realidade todas fantasias misturadas.

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Há quase quinze anos, nos primórdios deste sítio, uma senhora perguntou-me se ganhava alguma coisa com a publicação, na internet, das crônicas que cismara de escrever. Tentei lhe responder, então, falando de brioches e jabuticabas. Esta cartinha (embora se trate de mensagem eletrônica, não deixa de ser uma cartinha) veio trazer a resposta definitiva àquela pergunta, a explicação de que, na época, não fui capaz. Muito obrigado, muito mesmo. Pena não ter mais contato com a senhora que me perguntou...

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