Outro dia chegou um bilhete pelo correio: "Esta é a história do príncipe e da princesa, história imaginada, dessas que não existem, onde todo encanto está na fantasia." O tal bilhete seguia com uma imagem central: uma princesa cavalgando campos e campinas no formidável galope de um cavalo, ambos nus - a princesa e o animal. Seguia afirmando ter eu usado tal imagem, sei lá quando e nem porquê e corrigia um suposto equívoco: "... príncipes é que chegam montados, as princesas vem de carruagem ou ficam lá, esperando o tal príncipe chegar." O bilhete não dizia, todavia, este "lá" onde poderia ser...
Depois, ao que tudo indica, surpresa com a própria capacidade de imaginar, a autora do bilhete - quase me esquecia de dizer: era um bilhete de mulher, mas seria mesmo preciso, depois de duas ou três linhas? - surpresa com sua imaginação a autora vai embora, tecendo quase "filosofias" sobre a fantástica capacidade de imaginar do ser humano. Não está sozinha. Buñuel, que me ocorre de imediato, não só se fascinava igualmente com o tema, como recomendava diversos tipos de exercícios para alargar os horizontes costumeiros de imaginações e devaneios...
No final, ela repete o implacável óbvio ululante, que todos sabemos e aqui já muitas vezes repetido: "... assim acontece também com os príncipes e princesas que criamos! Eles são tão lindos, tão perfeitos, tão maravilhosos! ... justamente porque não são humanos, reais."
Sim, é mais que óbvio ululante, é o óbvio do alarme disparado e, apesar disso, cada um de nós, no devido tempo e circunstância, deixou-se embalar pela imagem de seu príncipe, de sua princesa, e acreditou nele ou nela mais do que em todos os alarmes retumbantes, a ecoar dentro e fora de si. Ah, nós, os seres humanos!...
O bilhete acabava assim: "o que você prefere: viver ou sonhar?"
Se você, leitor (ou leitora) sonhado, já respondeu antes mesmo da pergunta se completar ou está a debater-se entre uma e outra resposta, fique calmo. Não vim para saber se você optou pelo chamado mundo real, dito do preto no branco, das coisas concretas, palpáveis e mensuráveis (principalmente quando se toma como unidade dinheiro) ou, ao contrário, preferiu o ilimitado universo de fantasias, no qual se pode escolher as tintas e os efeitos especiais, tornar o impossível banal, bem como, criar a beleza do jeito que a julgar mais bela e estonteante. Não. O que me pergunto, a mim, e não a você, é porque teríamos de preferir? O que está por trás desse sempre desejar, que mundo é esse que se constrói com tanto querer?... Mas, antes, devo e preciso esclarecer, quase como uma confissão:
Durante anos, muitos anos, disse a mim mesmo que viver e sonhar eram, no fundo, equivalentes. Diante disso, optaria pelo sonhar. Independentemente de serem sonhos dos que sonhamos dormindo ou o sonhar da vigília. Nos dois casos haveria o momento de acordar que, ainda por cima, não me parecia muito diferente do despertar da vida real, essa que a razão supõe decifrar, através da morte... Um belo dia, sem mais nem menos, largaremos tudo - tudo! Sonhos, relações, amigos, filhos, pais, amantes, namorados princesas e príncipes - tudo! - sem escolha, sem possibilidade de qualquer conchavo, de nenhuma barganha. Largaremos o automóvel, a casa, as roupas, as cuecas e as calcinhas, as marcas que deixamos escritas e fotografadas, a voz, se for o caso, na fita magnética e a imagem que ainda se move e sorri no vetê... Deixaremos o computador e suas memórias - tudo, é tudo mesmo - e largaremos tudo, de uma hora para outra, sem escolher... Isto é morrer.
Na gigantesca cidade absurda a morte se transformou em idéias e imagens, em conceitos e preconceitos - sem jogo de palavras. Não convivemos mais com a natureza e, eventualmente, vemos as mortes de flores que já compramos mortas, se a faxineira as esquecer de ocultar... A minúscula, quase invisível formiguinha, que só nas cidades conseguimos perceber, seguia pela mesa. Num gesto automático meu dedo a esmagou. Por alguma razão inexplicável aquele assassinato me abalou. Lembrei, então, que minha mãe, já no finzinho falou-me: "hoje, matei uma formiga com o dedo, sem pensar, daquelas que assaltam o açucareiro... aí, pensei: para Deus, nós somos como essas formiguinhas, de repente, ele mete o dedão e... a gente morre sem Ele nem pensar..." Pouco tempo depois, minha mãe morreu.
Agora, me pergunto: por que teria de preferir - viver
ou sonhar? Se busco compreender algo já com uma preferência,
com o desejo de que seja assim ou assado, de que aconteça
isso e não aquilo... como posso compreender? Ah, quantas
armadilhas nos coloca nossa própria razão! E corremos
pela mesa sem poder adivinhar o momento do gesto automático
da Vida, que nos fará largar tudo que teve importância
para nosso ego, tudo que carregamos com orgulho e, diante do espelho,
se confundia com nossa imagem...
121