auto-retrato 

Tempos antigos

07/04/10

"São os tempos que pasmam os indivíduos", lembro-me do bordão a se repetir na capa da revista "Ciência Popular", publicada no Rio de Janeiro, entre as décadas de 48 e 60. A frase, em geral encimando testemunho fotográfico do inexorável desnudar-se do corpo feminino, imprimiu-se também em mim e, hoje, a olho incrédulo e reluto em atribuir à disparidade entre as novidades de uma tecnologia há pouco impossível e a memória de uma realidade hoje inverossímil nossa perplexidade.

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Diante de uma tecnologia autofágica e voraz aliada à prodigalidade de uma ciência fértil a atropelar a mais fantasiosa imaginação, hoje, ao lançar um olhar a tempos idos me pareceu possível, sim, pasmar também.

Sou do tempo em que por ruas vazias de carros de um Rio de Janeiro ainda provinciano, se podia ver figura singular, coberta de vassouras, vasculhos, espanadores (curioso instrumento destinado a transportar o pó daqui para acolá) e pás de lixo, tudo pendurado em si e numa travessa, apoiada em seus ombros, o transformando-o em alegoria viva sem escola nem samba.

O vendedor, com seus utensílios, amiúde se virava, ora à direita, ora à esquerda, a fim de conferir a eventualidade de algum freguês e, ao fazê-lo, agitava no ar penas, plumas, crinas e piaçavas num movimento precursor do rodar de saias das baianas de escolas de samba. Ia, pelo meio da rua, a repetir seu pregão quase cantado na modulação de sílabas: vaaaaaaassoureiro!

Como ele, desfilava naqueles tempos o vendedor de galinhas e outra aves vivas, amarradas e penduradas pelos pés, em trempe similar. Assinale-se, todavia, que este não se apregoava gaaaaaaalinheiro.

Quiçá, os tempos pasmem mesmo os indivíduos, pois a História não se assombra com engenhocas aptas ao que não se podia sonhar nem com recordações nítidas do que não se pode mais acreditar.

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