Espantava-me ver minha avó escrever, com caligrafia caprichada e a lentidão natural de sua idade assucar, assim, com dois esses e sem qualquer acento, ao anotar alguma de suas insuperáveis receitas. Eu, uma vez, avisei: vó, açúcar se escreve com cê cedilha e tem acento. Ela alegou ter aprendido a escrever a palavra daquele jeito e já estar muita velha para mudar. Acostumei-me a ver assucar e outras palavras, em suas anotações, com um ortographia diferente da que, então, se ensinava na escola. O pê e o agá, em particular, pareciam num firme namoro, sempre juntos como um grupo importante, um grupo consonantal, segundo aprendi no grupo, como hoje se diz, no grupo escolar. Depois, veio um ministro ornitológico, em plena ditadura militar, para mudar outra vez as regras do modo certo de escrever certas palavras... Aprendi, ali, a não confiar cegamente na ortografia, algo capaz de mudar conforme os ventos e os humores. A reforma, com sua forma e fôrma, abolia este circunflexo da forma a deixando sem forma. Pelos trilhos e trilhas daquela reforma, restou o circunflexo por cima de pôr e se misturaram pontos cardeais com este sem o seu chapéu. Muito depois, procurei em vão pelo agá de humidade e derivados e, por muito tempo fiquei sem saber se a viva impressão em mim vinha das receitas da vovó, de um pano molhado, por exemplo, para manter uma massa húmida, ou se ainda aprendera na escola a ortografia com que agora, eu tortografava... Senti um alívio quando descobri a humidade ainda húmida a humedecer os textos em Portugal e aliviou-me também o agá firme à frente de humide e palavras derivadas em francês. Agora, este agá também desaparecerá na jangada de pedra, com o novo voo de gramáticos e doutos pelas leis implacáveis aos que escrevem e leem. Assim será, e não vôo e lêem. |
|home| |índice das crônicas| |mail| |anterior|