Crônica do dia

Um alicate

02/12/05

A melhor esferográfica de que me lembro usar - opinião mais do que suspeita, pois está em uso, agora - é uma Stabilo Liner 808 M. Há ainda a palavra Schwan e novamente Stabilo, em caracteres minúsculos, quase invisíveis - para ver foi preciso um conta-fios - ao redor da pena ou ponta ou esfera ou seja lá o que for. Não na pontinha, um pouco acima, é claro. Comprei-a pelo design e todo texto que aqui desvendo é quase invisível, não torna o desenho menos limpo.

A capa, ou corpo, é transparente, incolor, fosca como o vidro despolido das antigas câmeras (ah, até outro dia era câmaras...) Tudo, cada detalhe, o clip, os respiradouros etc. - tudo, correto. Mas o mais importante, sem dúvida, é que escreve macio e a tinta flui como se de uma caneta tinteiro, das boas! Comprei-a há tempos, no Santos-Dumont, ao chegar de São Paulo, numa banca de quinquilharias de papelaria do aeroporto. Pior, acho que era a mais barata, então, ali...

Por que conto tais inutilidades, perguntam-se, por certo, leitoras que roubo a afazeres cruciais. Eis a verdade: conto por contar. Não sou importante nem tenho obra ou fato com que se importar. Tampouco passado erigido pedra a pedra, tijolo sobre tijolo de que me orgulhar ou nome que precise defender com ferocidade da lama que, supõe-se, inimigos estão sempre prestes a jogar, como pedras em Madalena, a Maria cuja verdade nem Cristo pode inteira revelar, nem nada... ou quase, sempre sobra tralha para se arrastar vida afora e mentiria se me dissesse leve, livre do peso de qualquer posse. Conto, afinal, por que a palavra flui como a tinta da esferográfica, tinta preta - não mencionara a cor - sem alarme, sem dor, sem esforço e, de repente, vê-se o papel manchado de bobagens inúteis.

à esferográfica - detalhe. Autora: Anucha
à esferográfica - detalhe. Autora: Anucha

Como estas ou um alicate que ganhei de presente há muitos anos e do qual, na certa, um dia falarei.

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