desenho do autor

de esporadicidade imprevisível

Um grito lancinante

02/04/18

Nilsilene deixou-se escorregar na cadeira, esticou as pernas e os pés o mais que pode enquanto cruzava os dedos das mãos sob a nuca e forçava a cabeça para trás — era quase como se espreguiçar. Depois, levantou-se e foi até a janela. Uma lua amarelada boiava alta a apagar as estrelas de segunda grandeza em um céu escasso de estrelas por causa das luzes feéricas de Copacabana.

Olhava o firmamento e tentava confirmar ser mesmo Escorpião a constelação apenas visível a sua direita, ao sul, portanto e ouviu um grito humano desumano, que logo a remeteu a infância, quando um leitão fora assassinado para o Natal no quintal de sua casa e o grito do animal ao morrer se impregnou de tal maneira em seu ser, para sempre, malgrado não a tenha impedido de comer aquele e inúmeros outros leitões, leitoas e porcos diversos ao longo da vida. Não experimentara ainda javali, os suculentos javalis de Asterix. Ouviu o grito lancinante e, em seguida, comentou com alguns de seus botões: alguém acaba de ser assassinado.

Contemplou em lenta panorâmica as centenas de janelas vazias ao redor. Poderia ser em qualquer uma delas ou em outras muitas da vizinhança fora de seu campo de visão. Chegou uma nuvem, de noroeste, e cobriu parcialmente a lua. Pensou em uma frase ouvida na véspera a afirmar ser apenas a imaginação o que nos diferencia dos outros animais... A imaginação se processa com palavras, pensou e o pensamento também, imaginou.

Um grito lancinante apenas imaginado, porém, não age sobre a psique como o som real e contundente da infância e seria preciso o efeito devastador da verdade, a ferir ouvidos e atingir os âmagos, para levar adiante sua ficção, a começar pela personagem de nome incomum, tomado por empréstimo de uma correspondência do dia. Não, mais uma vez constatava a impossibilidade da ficção.

Mon, 2 Apr 2018 12:56:39 -0300

ah, então não teve grito lancinante, Nilsilene?
Anteontem à noite ouvi uns gritos ou choro vindo da rua e fiquei na dúvida se era gato ou nenem. Alguns cachorros latiram o que me fez pensar na primeira hipótese e correr à janela, para ver se era um gato precisando de socorro urgente! Para meu alívio, não: era humano. O choro vinha da casa em frente, onde mora um bebê com mãe e pai. Tudo na paz.

      sem assinatura

Não, nenhum barulho na madrugada... dos fatos. Tenho lido muita ficção, sem parar, e me intriga a nossa relação com os dois mundos: o factual e o ficcional.

Sim, Nilsilene. Segundo o IBGE, existiam em 2010 (ano do recenseamento) 376 Nilsilenes no Brasil (talvez hoje haja mais). O fato surpreendeu-nos, ao Gustavo e a mim.

Interessante o confronto de minha ficção com a sua experiência...


Mon, 2 Apr 2018 09:51:26 -0700 (PDT)

esse grito foi imaginado?
esse leitao ...

      sem assinatura

Esse leitão o quê? Sim, aconteceu de fato, no 674 da Sorocaba.

Agora, o grito, pura imaginação... Como transitar entre os mundos factual e ficcional?

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