25/08/99
O camarada atravessa os sertões de todas as caatingas ressequidas pelo sol inclemente dos lugares comuns e, como último sobrevivente de filme de faroeste consegue balbuciar: ÁGUA! Mas são outros os tempos e o enredo assinala novos vendilhões em novos templos. O fariseu do terceiro milênio escuta o moribundo dizer pela segunda vez: ÁGUA! - e, antes do galo cantar, responde:
Deixa que eu vou providenciar. O que você quer? Um copo d'água? Está com sede? Deixa comigo. Eu sou o assistente do Serviço Autônomo de Combate à Desidratação e Higrometria de Mananciais e Recursos Hídricos do Subsolo Atmosfera e Superfície, um wizard do SACDHMRHSAS às suas ordens. Agora vou coletar algumas informações para processar seu pedido. Responda a algumas poucas perguntas e logo sua sede poderá ser aplacada com o precioso e cada vez mais escasso líquido.
Daí pra frente, toda pergunta pode parecer justa e cheia de boa vontade como, por exemplo, quando o senhor urinou pela última vez, qual o aspecto, cheiro e coloração da urina etc. O wizard caminha por árvores lógicas e cumpre rotinas imaginadas por programadores em salas com ar condicionado e música de fundo, no coração da maçã. Precisa das informações para chegar ao pedacinho do programa que irá liberar a água redentora no recipiente e doses cuidadosamente calculados, com todas aquelas propriedades físico-químicas que se vêm nos rótulos de água mineral.
Certa feita um amigo, de ascendência alemã, diante de um mecanismo complicado de um aparelho também alemão, que tentávamos reparar, me explicou: "você não conhece a filosofia da indústria alemã: para que fazer simples se complicado também funciona?" Esse parece o lema de nossos dias, com nítidos propósitos comerciais. Revestem-se as coisas mais banais da aparência mais complicada possível para vender a "solução".
No início deste século, parecia fascinante explicar o funcionamento das coisas. Havia um encantamento no desvendar e tornar transparente mecanismos científicos ou biológicos. O prazer do intelecto superava a ganância. Hoje...
O camarada tentou explicar ainda: ÁGUA! - mas não teve forças e o galo cantou pela terceira vez...
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