A memória segue como desafio a essa mania tão humana de querer tudo compreender. Uma cena banal e sem importância de repente volta à lembrança, passado meio século e, com ela, vem a primeira interrogação: o que a trouxe assim, sem qualquer provocação? Tentemos recriar o bucólico panorama daquele domingo, dia dez de julho de 1977.
O dia da semana não veio da memória e, sim, de um calendário vulgar. Fazia frio e tudo era novidade. Acabávamos de dormir a primeira noite na nova casa, faltando ainda arremates e complementações. Tudo isto é accessório nas lembranças, informações complementares, escapismo à cena original, mas assim a memória processa nossas lembranças, preenchendo lacunas com um pouco de bom senso e muita imaginação.
A energia elétrica só seria ligada um mês depois e o amanhecer coincide com a temperatura mínima, em geral. A noite absolutamente silenciosa... minto, houve pios de corujas e um misterioso som de trem, muito distante. O madeiramento novo do telhado também deu os seus gemidos. A casa mais próxima estaria a uns 400 metros.
De pé - todos tinham dormido muito cedo como consequência da falta de eletricidade - começamos a abrir janelas e portas, curiosos com o entorno e a paisagem inédita àquela hora matinal e foi ao abrir a porta principal da casa, para uma pequena varanda, que nos deparamos com a tal cena, origem deste relato. Na verdade, a lembrança é muito imprecisa, reduzida bem mais a uma informação, um conteúdo verbal, que a imagem preciosa e bucólica.
Ao abrimos a porta vimos com espanto, deitada bem ali, uma vaca. Vi também o frio e disse vi para o separar de qualquer sensação de frio, mas não lembro mais como ele se mostrava ali. Não tinha geada. Talvez muito orvalho... talvez a evaporação...
A porta aberta em 10 de julho de 1977
Sei restar-me a imagem de uma vaca adormecida em um cenário frio. Pareceu um bom começo...
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Tue, 25 Jul 2017 11:06:30 -0300
Oi, Clôde Adorei a foto - bucólica como o texto ( e também evocou reminiscências...).
A data da mudança é (mais uma) coincidência nas nossas lembranças: mudamos para a Granja em final de julho de 1977. Eu estava voltando com Daniel e David da Bahia , onde tinha trabalhado desde ano anterior. Acho que já tínhamos luz, água de poço, e muitas árvores plantadas, ainda novinhas; de resto, o jardim era um mato raso, com o brejo (que depois virou lago) no fundo do terreno. Mas os banheiros e a cozinha não estavam equipados: nos primeiros meses, comíamos na casinha de caseiro, onde dormia a Luiza, uma velhinha que me acompanhou a Salvador - e onde a encontramos morta (enfarto) poucos meses depois, ao descermos pra jantar. Como não tínhamos telefone, Fernando saíu à noite pra pedir ajuda a um vizinho, de onde telefonou pra meu cunhado pedindo que viesse buscar as crianças, e para tentar localizar a família de Luiza e um médico para fazer o óbito. Não foi possível, e foi preciso chamar a polícia, que a levou para fazer autópsia - o que nos custou ressentimentos eternos por parte da família dela.
Foi mais tarde, acho que uns quatro anos depois (eu já estava esperando o Denis), que Anucha apareceu um dia lá em casa em um fusquinha e com uma cachorra a bordo, pra perguntar se eu topava fazer fotos para um livro que ela estava ilustrando (não lembro o nome do autor - era um médico, e o livro era tipo manual de orientação para mães/ pais; acabei dando para minha nora quando Luan nasceu). Ela tinha sido sabido que eu estava grávida pelos seus meninos, que volta e meia pegavam carona comigo pra voltar da escola da Granja. Ainda tenho aqui na parede uma dessas fotos, que virou um pequeno pôster. E as fotos que ela tirou de Denis recém-nascido foram usadas muitas vezes em minhas aulas e apresentações em congressos; Uma delas, que mostra o “sorriso não eliciado”, uma expressão facial que causou muita controvérsia entre pesquisadores da área (os pediatras e os behavioristas afirmavam que era provocado por gases, e os etólogos e pesquisadores de comunicação não-verbal sustentavam que era uma expressão de conforto com função adaptativa na comunicação com os cuidadores) encantou o prof Paul Eckman (um dos pesquisadores mais reconhecidos nessa área), que estava dando um curso na USP: quando lhe mostrei, ele disse que nunca tinha visto uma foto tão boa desse fenômeno... Não me lembro se cheguei a contar isso para Anucha.
Mas lembro que, além da coincidência de 1977 , com o tempo apareceram mais algumas: o nome Ana Maria; também só tivemos filhos homens; Fernando foi aluno de vocês na Enfoco; e, salvo engano, Anucha é aquariana como eu (26 de janeiro de 45), e você é pisciano como Fernando, não é? Ele é de 28 de fevereiro de 44.
Junto algumas fotos - duas delas foram escaneadas, e saíram piores do que os originais, mas também são reminiscências...
Bjs Ana
P.S. A foto Ana, David (e Denis) foi o motivo original do contato: Anucha precisava fotografar uma mãe grávida com um filho mais velho que ia deixar de ser o caçula - um dos temas de que o livro tratava quando falava de gravidez.
P.S. 2: a denominação “sorriso não eliciado” é pelo seguinte: os primeiros sorrisos sociais do bebê são provocados pela voz e/ou pelo rosto da mãe; no sorriso não eliciado, a mãe não está falando, e o bebê está de olhos fechados - então não é um sorriso social: é uma expressão de conforto/ relaxamento, e acontece tipicamente depois de uma mamada, alternada com outras expressões, como altear as sobrancelhas e fazer biquinho; e as mães interpretam como um sorriso que diz: estou feliz...
Oi, Ana.
Lembro-me bem de muitas coisas aqui descritas. De outras, nunca soube, como a história da Luiza, por exemplo. As fotografias feitas por Anucha e o livro com você e o bebê são bem vivos em minha memória e, é óbvio, também desconhecia o "sorriso não eliciado" e as teorias por ele motivadas. Obrigado por seu relato.
Wed, 26 Jul 2017 15:14:51 -0700 (PDT)
nossa, q barato essa lembranca! uma vaca, assim, logo no primeiro amanhecer nao sabia q a eletricidade so tinha sido ligada um mes dps ... julho de 1977 ... Bruno tinha um ano e meio, entao o Vi tinha 7 o Rafa 9 (?) mts bjs
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Sim...
O Rafael completaria dez anos dali a alguns dias...
Ficamos um tempo sem luz, depois puxamos uns fios de uma casa vazia a uns cem metros...
Pagamos (indevidamente) os postes, o transformador e os fios para ter eletricidade.
Sun, 6 Aug 2017 13:03:23 -0300
Adorei a história da Sra. Vaca imprevista... Pena que aconteceu uma única vez, né? Gosto demais desses totais imprevistos. A surpresa de verdade sempre me encanta, mesmo quando é do contra. Tomara que se repita várias e várias vezes. De preferência com a presença de uma vaca bem gorda, né?
Beijo estilo muuuuummmm....
beijo
faz frio de novo por aqui...
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Sim, aconteceu apenas na primeira manhã... Sim, tais imprevistos no põem frente a frente com o novo. Aqui em Copacabana uma vaca bem gorda seria mesmo a surpresa maior...
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