Vou pôr os óculos e, ao manuseá-los, percebo frouxas suas hastes. Pego uma velha caixa de charuto, não de charutos, "Havana Vuelta-Abajo" onde, na outra face, se acrescenta um adjetivo, como se a palavra o deixasse melhor: "Supremo", da charutaria Suerdieck. Nela, há décadas, guardo as chaves de fenda de relojoeiro. Elejo uma pelo tamanho e me deparo com o impossível: assim como dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço, a um único corpo se veda estar simultaneamente em dois lugares diferentes. Pego os óculos para o aperto e me vejo na impossibilidade de os ter sobre o nariz para sua função primária.
Tento acertar a fenda minúscula pelo tato e pelo que me sobra da visão de perto. Cutuco, cutuco e me certifico da impossibilidade do desafio que me impus. Levanto para a ir buscar outros óculos e, de volta, me surpreendo com a facilidade da tarefa e, mais uma vez, me deslumbro com a maravilha de nossa visão: a mão logo adquire destreza e grande precisão. Torna-se apta ao ajuste mais fino sob o comando de um cérebro que vê.
Durante anos o esqueleto do ipê amarelo se desmonta. Resta, agora, pouco mais que o tronco. Primeiro apareceram muitos liquens, alguns vermelhos - talvez não fossem liquens, pouco sei deste reino - e a árvore envelheceu e morreu após florir duas flores perfeitas e lindas. Última floração de quem produzira floradas tão abundantes em tantos setembros.
Depois, galhos caíam, um após outro, devorados por uma legião de larvas, que atraíam muitos pica-paus. Parasitas e epífitas se multiplicaram por fora e, de quando em quando, o vento ou o peso de uma ave maior, abatia mais um pedaço. A árvore não cairia sobre o telhado ainda que quase lhe esbarrasse no beiral.
Guardei a chave na caixa de charuto e pus os óculos com hastes justas. Pronto. Agora, à crônica de hoje.
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